“- O senhor também era fotógrafo, não era Mr. Rayment?
- Sim, tive um estúdio em Unley. Durante uns tempos também dei aulas de fotografia à noite. Mas nunca fui (como é que hei-de dizer?) um artista da câmara. Fui sempre mais um técnico.
- Sim, tive um estúdio em Unley. Durante uns tempos também dei aulas de fotografia à noite. Mas nunca fui (como é que hei-de dizer?) um artista da câmara. Fui sempre mais um técnico.
É coisa de que se peça desculpa, não ser um artista? Porque há-de pedir desculpa? Porque havia o jovem Drago de esperar que ele fosse um artista, o jovem Drago, cujo objectivo na vida é ser um técnico da guerra?”
J.M. Coetzee, O Homem Lento, D. Quixote, 2008
1 comentário:
E por ocasião das aspas, do Natal e da fotografia, roubei este de um blogue, pois ao que parece, nos intervalos da vida distraio-me nisto dos blogues. Creio que me distraio mais do que me divirto, mas por vezes até gostaria de me divertir. Vou deixar aqui este do Alberto Caeiro, apanhado num blogue. Tentei encolher-me bastante, tornar-me o mais possível invisível, mas mesmo assim tudo acaba por ocupar um pouco de espaço e eu nunca consego ser "anónimo" o suficiente, que é o mesmo que dizer «autenticamente livre».
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
(...)
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
(...)
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou
Se é que ele as criou, do que duvido
Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.
(...)
(Poemas de Alberto Caeiro)
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