25 dezembro, 2008

/uma fotografia, um nome\

s/t
(© António Drumond)

O isto foi de Roland Barthes ainda incomoda muita gente. Mesmo aqueles que aceitam com cautela o valor indicial da fotografia, mas recusam que a fotografia, toda a fotografia, tenha a sua natureza específica, o seu “noema”.

Esta imagem de António Drumond é posterior à sua belíssima publicação O Preto, o Branco e alguma Cor, que é de 2006 (Campo de Letras), onde quase resume uma longa história do seu olhar fotográfico, sempre experimental e sempre atento às alterações dos contextos. Meses atrás este Arte Photographica publicou esta mesma imagem para ilustração da comemoração do Movimento IF, no Museu Soares dos Reis.

Trata-se de uma composição feliz. Que seja arbitrária ou não, é indiferente: Drumond apreendeu a ligação imediata entre o livro que a jovem da pintura de Veloso Salgado segura com certo enfado e a montra adjacente do Museu. O vestido negro fabrica um contraste profundo e provoca uma impressionante festa de cores quentes.

Há um lugar de interacção e o fascínio criado pelo umbral da desconstrução da rapariga do quadro. O mistério desse limiar, que atinge apenas a memória, assenta no facto de ser o lugar onde o observador não pode estar: é, naturalmente, a desconstrução da continuidade e da identidade de cada um. O que nos leva ao código da experiência estética militante, no seu afã muito actual de que as obras de arte valham não pelo que são, mas pelo que fazem.

A lógica cultural é hoje a multiplicação da oferta, que os estados traduzem na sua política cultural de conteúdos. Mas a arte não pode dissolver-se na comunicação que tudo rege, porque tem um núcleo incomunicável que, por isso mesmo, suscita diversas interpretações. Tenta sê-lo pela procura de singularidades, pelas manifestações transgressoras, pela diluição das fronteiras. Mas há uma aura de real nas fotografias, há uma contiguidade entre objecto fotografado e a imagem latente que fica na película e por isso mesmo Barthes dizia de todas as fotografias, isto foi. Por isso a arte contemporânea cede ao trauma do encontro com o real de que a fotografia é contaminada – esse real que, lá diz Lacan, se distingue do verdadeiro, porque não é aberto à linguagem e ao simbólico.

E então António Drumond investe em Veloso Salgado como uma citação sem propósito e num pequeno marketing da nossa cultura que ainda se mantém erudita: esta imagem fotográfica parece congregar a inutilidade de ferozes criticismos sobre o lugar do poder na arte: fala de um museu, está num museu, é e não é a sua memória.

Na contiguidade entre a realidade, oferecida ou construída, mas que vemos e olhamos, qualquer coisa se instalou na película ou na organização dos pixels, o isto foi. Podia não ser, porque não apreendido no seu enquadramento antes da imagem; é a imagem que cria o seu referente. Agora é uma realidade poética cheia de cor, a realidade da fotografia , que resultou de um olhar e de uma pulsão qualquer.

António Drumond construiu uma metáfora, nós construiremos, olhando-a, outras ainda. É com estratégias destas, onde conta muito o desejo e sua poesia que entendemos o mundo diverso onde vivemos.

Maria do Carmo Serén

António Drumond é fotógrafo amador; pertenceu ao Grupo IF (Ideia e Forma) e tem uma sólida carreira de exposição.

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