30 janeiro, 2010

documentar


© António Pedro Ferreira


António Pedro Ferreira
Os portugueses em França, depois dos bidonville

Sérgio B. Gomes
P2, Público, 30.01.2010

Para os fotógrafos, há poucos dias assim. Dias em que se realizam as quatro ou cinco melhores imagens de uma carreira. As mais marcantes, as que melhor sintetizam ambientes, vivências, estados de espírito - a carga emotiva. “É coisa rara”, garante António Pedro Ferreira que, na verdade, conseguiu registar numa tarde aquelas fotografias que guarda no Olimpo de todos os momentos que passaram pela sua objectiva. E foram muitos.

O homem com o dedo no gatilho (que faz lembrar a inocência do rapaz de granada na mão de Diane Arbus) e a mulher de bata prostrada sobre mesa são dois desses momentos fundamentais para o fotojornalista do semanário Expresso que, no início da década de 80, testemunhou o quotidiano da comunidade de emigrantes portugueses nos arrabaldes de Paris, quando os bairros de lata (os tristemente famosos bidonville) já tinham sido substituídos por outro tipo de guetos, erguidos em prefabricado, cercados de arame farpado e com saída para um viaduto.

Quando chegou a Paris em 1982, recém-formado em medicina, para fazer um estágio na prestigiada cooperativa de fotojornalismo Magnum (façanha até hoje inédita entre fotógrafos portugueses), o projecto para estudar de forma demorada e consistente a presença dos portugueses em França já estava bem delineado. Foi graças a ele (e a cartas de recomendação assinadas por nomes como Jean-Claude Lemagny, conservador de fotografia da Biblioteca Nacional de França, historiador e crítico de fotografia que ficou deslumbrado com trabalhos anteriores de António Pedro Ferreira) que ganhou o único lugar da primeira bolsa de fotografia criada pela Secretaria de Estado da Cultura. Mas foi sobretudo graças a um talento em ascensão que as portas da exclusiva Magnum se abriram para um longo trabalho documental.

Toda a abordagem formal do ensaio em Paris havia de ser marcada por livros de fotografia de Cartier-Bressen, Josef Kudelka, Tony Ray-Jones, Robert Frank, Edouard Boubat e William Klein (principal referência) consultados em Lisboa nas bibliotecas da Alliance Française, do Instituto Britânico ou à socapa na livraria Buchholz (Gypsies, de Koudelka era meticulosamente arrumado no fim de uma pilha de outros livros para não ser comprado). “Os livros de fotografia ensinaram-me a ver”, lembra António Pedro Ferreira.

Na agência, o trabalho do fotógrafo era orientado por Jimmy Fox, rédacteur-en-chef, que não abria mão de ver as provas antes de todos. Pelo menos uma vez por mês, cumpria-se o ritual de discutir as últimas imagens que mostravam todo o tipo de manifestações sociais, o dia-a-dia de portugueses que moravam em aglomerados como St. Denis e Gentilly. O resultado de mais de dois anos a acompanhar esta realidade é um retrato cru de uma comunidade relativamente desorientada, socialmente deslocada, angustiada e triste, fechada nas suas associações e colectividades.

Para além da importância como documento social, este ensaio deu passos inovadores. “O que é notável nestas fotografias é que elas marcam o início de uma nova atitude no fotojornalismo português. Estávamos perante um jovem que queria intervir na sociedade, testemunhando, convergindo com uma preocupação inabalável de produzir fotografias com referências. Fotografia pura e dura. Daí a Magnum e o aval de qualidade que sempre atestou ao seu trabalho”, escreve Luiz Carvalho no texto de Segunda Escolha, um conjunto de 20 fotografias com que a K Galeria, em Lisboa, inaugurou o ciclo de exposições de 2010. Segunda Escolha, entenda-se, apenas porque a maioria das imagens são inéditas e porque a primeira escolha deste trabalho foi feita para uma exposição no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, em 1998.

A K Galeria procura agora transformar esta exposição em livro. Para que fique gravado de maneira mais ampla e duradoura o que foi a odisseia da emigração portuguesa em França. Para que possa ser dado como exemplo o que foi um raro ensaio visual de jornalismo na história da fotografia em Portugal.



© António Pedro Ferreira

1 comentário:

José Manuel Vilhena disse...

Também "há dias assim" para encontrar espaços como este.Um enorme prazer.

 
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