06 agosto, 2009

/uma fotografia, um nome\

Bruno Sequeira, Pushkar, 1993
© Bruno Sequeira


E regresso a Nietzsche, o que é inevitável, tratando-se de fotografia, essa imagem que está sobre os ombros do tempo e agrega em si todas as experiências anteriores. Vejo pois o homem como o animal que é construtor de metáforas; e a metáfora como a nossa forma de caracterizar o desconhecido vestindo-lhe o casaco reconfortante do que já conhecemos. Ao comunicar com os outros, pelo som ou pela imagem, temos de criar modelos, representações, ilusões, ficções e mentiras; mentiras que são réplicas, que são signos.

É um processo já mediático, pouco simples e relativamente eficaz; mas nem tudo, objectos materiais ou imateriais, se deixa cobrir com metáforas. Há sentimentos, pulsões e imagens que não sabemos traduzir. E não saber classificar, fechar no armário do entendimento num código acessível, não saber ordenar e transformar em conhecido, (significar) é um arrepio, uma desolação.

Por tudo isto esta imagem de Bruno Sequeira investe sobre nós, no turbilhão da poeira levantada, numa aceleração visível. Esta estratégia de fazer saltar sobre nós o acontecimento, já o cinema divulgara, desde os quadros cinematográficos mais pioneiros com comboios que progridem para o público, à avassaladora cena inicial de "A Guerra das Estrelas/2". E bem antes, Emílio Biel fazia publicar na primeira página de “O Occidente”, a preto e branco e em xilogravura, uma locomotiva com o mesmo efeito.

Aqui, em Rushkar, soma-se ao choque iminente a indeterminação dos animais: entrevistos na sua parte, não nos olhares, investem cegos como as máquinas, mas não o são.

Sabemos o milagre do que somos: sentimos a velocidade, a poeira, o cheiro, a estranheza e a aproximação da catástrofe. Somos animais de frontalidade visual, mas precisamos da distância. Recuamos frente à vertigem da incapacidade de defesa. Num primeiro olhar, a única metáfora que sabemos é a do medo. Mas um medo intelectualizado, um breve tremor e recuo, porque a sabemos imagem. Mas a fotografia já nos prendeu. Uma cáfila? Uma debandada?

Habituamo-nos à inteligibilidade da imagem, interiorizamos a banalidade do risco improvável, do sobressalto, da neurose. A multiplicação das imagens que nos rodeia quase torna exterior o mundo interior de cada um, codifica a sensibilidade, mas ainda não se deteve na apresentação, no fenómeno sem nome. Frente à estranheza ficámos sem dois dos três canais psicológicos que nos dão o mundo, o imaginário e o simbólico. Resta o real, que não é fiável, pois é um residente do inconsciente: só é real, o que é ignorado.

Se o ponto de vista fosse lateral havia percepção imediata, porque não éramos potencialmente agredidos. A potência, porém, está na mão do fotógrafo, que reage assim à sua argumentação Ele usa o imaginário e o simbólico e com isso vai filtrando a significação: cáfila? Debandada sobre a estrada solar?

Por vezes esquecemos o que sabemos; a fotografia, mesmo relevando da realidade que de certo modo transporta, nada diz em si mesma. Interpretamos os dados, as referências que lhe atribuímos ao sabor de imagens semelhantes, associando-lhe metáforas que coincidem ou não com as do fotógrafo. Há fotografias que nos falam porque nelas fala o nosso real, armadilhando-nos, armadilhando-as. A realidade é o lugar estruturado pela precisão e complexidade das nossas ligações ao mundo; o real caótico que partilhamos com a verdade do mundo, na sua e nossa inconsciência, só se apresenta como esta imagem de Bruno Sequeira, uma armadilha pelo sentir.

Maria do Carmo Serén

Bruno Pelletier Sequeira vive em Lisboa; É engenheiro, fotógrafo, professor e investigador em fotografia, cine-vídeo e som.

2 comentários:

Sara Fidiró disse...

Magnfico blog. Bjs

Rui Fartura. disse...

oh que lindo.. as palavras em sintonia com as imagens, uma complementariedade tão bem construida aqui, neste blog. gostei muito do teu trabalho, das imagens e do modo como as lês no teu subconsciente.

 
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