© Bruno Sequeira
E regresso a Nietzsche, o que é inevitável, tratando-se de fotografia, essa imagem que está sobre os ombros do tempo e agrega em si todas as experiências anteriores. Vejo pois o homem como o animal que é construtor de metáforas; e a metáfora como a nossa forma de caracterizar o desconhecido vestindo-lhe o casaco reconfortante do que já conhecemos. Ao comunicar com os outros, pelo som ou pela imagem, temos de criar modelos, representações, ilusões, ficções e mentiras; mentiras que são réplicas, que são signos.
É um processo já mediático, pouco simples e relativamente eficaz; mas nem tudo, objectos materiais ou imateriais, se deixa cobrir com metáforas. Há sentimentos, pulsões e imagens que não sabemos traduzir. E não saber classificar, fechar no armário do entendimento num código acessível, não saber ordenar e transformar em conhecido, (significar) é um arrepio, uma desolação.
Por tudo isto esta imagem de Bruno Sequeira investe sobre nós, no turbilhão da poeira levantada, numa aceleração visível. Esta estratégia de fazer saltar sobre nós o acontecimento, já o cinema divulgara, desde os quadros cinematográficos mais pioneiros com comboios que progridem para o público, à avassaladora cena inicial de "A Guerra das Estrelas/2". E bem antes, Emílio Biel fazia publicar na primeira página de “O Occidente”, a preto e branco e em xilogravura, uma locomotiva com o mesmo efeito.
Aqui, em Rushkar, soma-se ao choque iminente a indeterminação dos animais: entrevistos na sua parte, não nos olhares, investem cegos como as máquinas, mas não o são.
Sabemos o milagre do que somos: sentimos a velocidade, a poeira, o cheiro, a estranheza e a aproximação da catástrofe. Somos animais de frontalidade visual, mas precisamos da distância. Recuamos frente à vertigem da incapacidade de defesa. Num primeiro olhar, a única metáfora que sabemos é a do medo. Mas um medo intelectualizado, um breve tremor e recuo, porque a sabemos imagem. Mas a fotografia já nos prendeu. Uma cáfila? Uma debandada?
Habituamo-nos à inteligibilidade da imagem, interiorizamos a banalidade do risco improvável, do sobressalto, da neurose. A multiplicação das imagens que nos rodeia quase torna exterior o mundo interior de cada um, codifica a sensibilidade, mas ainda não se deteve na apresentação, no fenómeno sem nome. Frente à estranheza ficámos sem dois dos três canais psicológicos que nos dão o mundo, o imaginário e o simbólico. Resta o real, que não é fiável, pois é um residente do inconsciente: só é real, o que é ignorado.
Se o ponto de vista fosse lateral havia percepção imediata, porque não éramos potencialmente agredidos. A potência, porém, está na mão do fotógrafo, que reage assim à sua argumentação Ele usa o imaginário e o simbólico e com isso vai filtrando a significação: cáfila? Debandada sobre a estrada solar?
Por vezes esquecemos o que sabemos; a fotografia, mesmo relevando da realidade que de certo modo transporta, nada diz em si mesma. Interpretamos os dados, as referências que lhe atribuímos ao sabor de imagens semelhantes, associando-lhe metáforas que coincidem ou não com as do fotógrafo. Há fotografias que nos falam porque nelas fala o nosso real, armadilhando-nos, armadilhando-as. A realidade é o lugar estruturado pela precisão e complexidade das nossas ligações ao mundo; o real caótico que partilhamos com a verdade do mundo, na sua e nossa inconsciência, só se apresenta como esta imagem de Bruno Sequeira, uma armadilha pelo sentir.
Maria do Carmo Serén
Bruno Pelletier Sequeira vive em Lisboa; É engenheiro, fotógrafo, professor e investigador em fotografia, cine-vídeo e som.
2 comentários:
Magnfico blog. Bjs
oh que lindo.. as palavras em sintonia com as imagens, uma complementariedade tão bem construida aqui, neste blog. gostei muito do teu trabalho, das imagens e do modo como as lês no teu subconsciente.
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