07 março, 2009

*À conversa com...


Varela Pécurto, Belezas da Noite, 1951


...Emília Tavares (comissária da exposição Batalha de Sombras)

Quem são os protagonistas desta batalha de sombras?
É a fotografia portuguesa dos anos 50. É uma época muito sombria da nossa história. A fotografia deste período reflecte um pouco essa melancolia e esse desalento. A batalha de sombras aqui evoca essa dicotomia que se estabeleceu historiograficamente entre fotógrafos que eram todos amadores, mas, supostamente, uns eram mais esclarecidos do que outros. Acho que é uma dicotomia errada se for vista de uma forma linear. Há muitas nuances, ambivalências e contradições.

A exposição relaciona o contexto social, político e histórico desse período com estes fotógrafos. Supostamente estariam a caminhar em sentidos opostos em termos de expressão fotográfica, mas como se vê na exposição não estão assim tão distantes. Mas o que importa sublinhar é que, por vezes, dentro do mesmo autor há manifestações de várias correntes fotográficas. Por outro lado, o título tem a ver com a marginalidade e com a quase inexistência de visibilidade para esta fotografia.

Todos estes autores estão na sombra. Produzem, fazem um trabalho fotográfico, mas sempre na sombra. Ou fazem-no num circuito muito fechado dos salões ou então não mostram os seus trabalhos. Gérard Castello-Lopes , Sena da Silva ou Carlos Afonso Dias têm percursos mais em conjunto ou mais isolados, mas completamente de costas voltadas para outras correntes. E também não mostram os seus trabalhos. Só a partir dos anos 80 é que se tornam conhecidos, quando António Sena os expõe.

Os autores e as obras estavam na sombra em relação à sociedade e ao meio cultural e artístico do seu período, são completamente ignorados. Mesmo os fotógrafos mais empenhados politicamente ou que tinham conotações políticas – há aqui autores que têm uma conotação declarada, como Carlos Afonso Dias que pertenceu ao MUD. Este ensejo de querer outra sociedade, outra cultura e outro regime manifesta-se sempre através de um lado muito melancólico. As imagens da sociedade portuguesa desta época são muito carregadas e tristes, marcadas por uma grande angústia existencial.

O que é que torna os anos 50 um momento tão particular na fotografia portuguesa?
Acho que é uma confluência de todas estas correntes que estão patentes na exposição. É a vertente do salonismo, do naturalismo, do surrealismo, do abstraccionismo, do humanismo e das aproximações às imagens mais neo-realistas ou com preocupação mais social.

A emergência de novas associações fotográficas nos anos 50 que vieram também dinamizar o meio.

Que importância tem a exposição surrealista na Casa Jalco para o desenvolvimento de correntes fotográficas mais desligadas da ideologia e dos salões?
Tem um significado social e cultural muito grande na época. Há uma intencionalidade muito própria para chocar. É o surrealismo ao serviço da inquietação. Dirige-se socialmente à burguesia enquanto que o neo-realismo quer intervir em relação ao povo. É um momento episódico que depois não tem qualquer continuidade, ao contrário do neo-realismo. Estancou ali.

Quando o movimento surrealista se dilui, no início dos anos 50, o próprio Lemos faz aproximações ao abstraccionismo. A influência fotográfica da exposição da Casa Jalco perde-se. Não é um caminho que seja explorado também porque internacionalmente a fotografia segue outros rumos. Quando chega Gérard Castello-Lopes e o seu grupo não estão interessados no surrealismo, estão mais interessados na fotografia realista de inspiração francesa e na escola americana.

Há muitos nomes nesta exposição sobejamente conhecidos mas outros sobre os quais raramente se ouviu falar. A que é que se deve este desconhecimento quase absoluto de um período da nossa história da fotografia que afinal não é assim tão distante?
Deve-se a essa inexistência de expressão pública da fotografia na época. Quando foi incorporada nas exposições de artes plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes a fotografia só esteve presente em 3 das 11 exposições. Não se falava sobre fotografia, os outros artistas não falavam sobre fotografia. Do ponto de vista historiográfico a atenção também foi quase nula. Há muita história da fotografia portuguesa que ainda está por desvendar. Aqui [nesta exposição] era importante conhecer as imagens para sabermos sobre o que é que estamos a falar. Se nem as imagens conhecíamos não se podia partir para lado nenhum. É por isso que é tão importante a investigação.


Continua a ser fulcral para a fotografia portuguesa procurar espólios e aprofundar conhecimentos sobre espólios já conhecidos e isso é uma luta que passa pelas universidades e pelos museus, por todos os agentes culturais que devem investir mais nesta vertente.

Outra coisa importante para esta questão da visibilidade é que todos estes autores de que fala esta exposição eram amadores, tinham outras profissões e a fotografia era como um passatempo, exceptuando alguns como António Paixão e João Martins. O que temos aqui era uma manifestação daquilo a que se pode chamar de “baixa cultura”.

Exceptuando o Harrington Sena e Franklin Figueiredo, todos os outros amadores salonistas têm até algum pudor em considerar a fotografia como arte. João Martins dizia, por exemplo, que a fotografia era arte mas não se equiparava à pintura.

Há outra vertente muito importante dos anos 50 que é a visita de muitos fotógrafos estrangeiros a Portugal. É muito interessante olhar hoje para essas imagens e para estas.

Paradoxalmente, neste clima social e cultural abafado, pouco discutido e ousado quanto baste, produziram-se imagens fotográficas com um grande impacto documental e estético que influenciaram muito do que se fez nas décadas seguintes...
A influência se calhar não é assim tão consciente. O livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre foi praticamente ignorado até há pouco tempo. Nos anos 60 a grande via de afirmação da fotografia portuguesas é a da fotorreportagem. Nomes como Jorge Guerra, Augusto Cabrita, Alfredo Cunha, e Eduardo Gageiro começam a explorar mais o real na fotografia. Quando olhamos para as suas imagens é natural vermos reflexos daquilo que está para trás no livro da dupla Palla/Costa Martins.

As outras vertentes são mais ou menos abandonadas. Os salões começaram a cair, vão morrendo por si próprios. A fotografia começa a ser também incorporada no discurso artístico de uma forma que não tinha sido até então. Os artistas plásticos começam a utilizar a fotografia integrando-a noutras linguagens.

No texto de apresentação afirma-se que a tradição e a inovação deixaram de ser neste período os principais pontos de referência. Para onde se voltaram então as principais correntes fotográficas?
Para a hibridez. O que mais me fascinou neste período foi a riqueza na contradição. Foi ter um fotógrafo com a paisagem mais bucólica possível, mais clássica e tradicional, e a seguir com uma abstracção a explorar as linhas, a luz e as sombras.

Olho para as correntes dos anos 50 como se fossem nichos, todos de costas voltadas, mas que a um certo nível estão a tecer uma rede, relações, contaminações e interferências. Olhando hoje historicamente para isso percebe-se que há ali um mapa de expressões do qual os próprios não se apercebiam.

Pode falar-se do surgimento de um modernismo fotográfico durante os anos 50? Em que escolhas se manifestava essa opção?
Pelo menos da afirmação de um certo modernismo, acho que sim. É curioso porque parece que estes autores surgiram do nada. Olha-se para trás e pergunta-se onde é que eles foram buscar as suas influências, as suas linguagens. Mas não nos podemos esquecer de uma coisa: apesar de serem fechados os salões tinham relacionamento internacional. E se calhar esta era a única esfera da fotografia portuguesa deste período a ter este contacto sistemático com coisas que se faziam noutros países.

É importante dizer aqui também – e sou obrigada a rever algumas das minhas posições quando publiquei em livro a investigação sobre João Martins – que não é assim tão linear a associação entre salonismo e fascismo. É óbvio que o salonismo também serviu a fotografia de propaganda, mas de facto este género não é só isso. E essa é a grande lição que tirei ao estudar agora a década de 50. É um estereótipo que acho que vale a pena rever. Dentro do salonismo as coisas não são rectilíneas.

A fotografia salonista teve algum impacto noutros géneros?
Não, porque não tinha expressão pública. Não podia influenciar nada porque não tinha visibilidade. Nem visibilidade nem reconhecimento.

Acha que o Estado Novo não impôs assim tanto como pensávamos a sua ideologia à produção fotográfica?
Acho que não. O regime nunca impôs uma linguagem fotográfica. Aquilo que António Ferro [líder do Secretariado da Propaganda Nacional e depois do Secretariado Nacional de Informação durante o Estado Novo] fez nas décadas anteriores foi contratar os grandes fotorrepórteres e aproveitar o trabalho que já tinham feito. A máquina de propaganda do regime foi buscar aquilo que já existia. A utilização dessas imagens é feita de acordo com interesses muito específicos do ponto de vista ideológico. Há imagens dos anos 30 que são aproveitadas para os grandes álbuns do Estado Novo que tinham sido publicadas em reportagens dez anos antes noutro contexto completamente diferente.

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