14 fevereiro, 2009

ECT sobre os prémios WPP08

Yannis Kolesidis/Reuters, Grécia, 2º prémio People in the News

O crítico do Público Eduardo Cintra Torres é um espectador atento à criação fotográfica contemporânea e ao fotojornalismo em particular.
Eis o texto que escreveu para o Arte Photographica sobre os prémios World Press Photo 2008 ontem divulgados:

Não há luz ao fundo da porta do fundo das nossas casas

O Iraque e o Afeganistão desapareceram dos prémios World Press Photo relativos a 2008. Não há entre as fotografias premiadas nada da guerra no Iraque (mas ainda há guerra no Iraque? Esta semana, em Badgad, o movimento do anti-american radical cleric Al-Sadr, como lhe chama a imprensa americana, patrocinou uma boa exposição de pintura contemporânea iraquiana). Do Afeganistão, nada também. E do Médio Oriente, onde ocorreram duros combates entre Israel e o Hamas, chega apenas uma fotografia, anterior ao conflito. É uma imagem de perturbadora beleza: quatro manifestantes palestinos procuram abrigar-se debaixo de uma oliveira isolada enquanto pelo chão se espalha uma nuvem de gás lacrimogéneo; a mancha branca do gás é bela, igual aos farrapos de nuvens verdadeiras no céu azul com que parece misturar-se, o nevoeiro lacrimoéneo quer esconder o mal que alberga; e a oliveira, tão bonita, símbolo de paz, no meio da pequena clareira onde o gás ainda não chegou, parece o antídoto contra o gás venenoso, mas, na sua velhice, enrosca-se em si mesma, dando um movimento adicional à imagem que nos diz como a paz é torta e difícil naquele lugar. A fotografia não ganhou o primeiro prémio, nem as fotografias do conflito mais ilustrado deste ano, o da guerra na Geórgia, que aos tanques e militares preferiram gente que chora mortos: o fotojornalismo, como a pintura desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial, não quer saber de vitórias militares, apenas vê derrotas humanas.

É o caso das guerras tribais no Quénia, que motivaram imagens premiadas, fotografias extraordinárias que mostram que não há ali diferença entre vencidos e vencedores, os que matam e os que morrem são intermutáveis, é terrivelmente difícil sentir pena, apenas se sente horror pelo grau zero a que chega o valor da vida: aquela criança que à porta de casa agita as mãos quando chega o assassino de cacete na mão tem o horror da morte espelhado no gesto.

Há ainda outras guerras destacadas pelos prémios deste ano. São as guerras da natureza contra o homem, a que chamamos catástrofes naturais: um terramoto na China premiou um instantâneo com o primeiro lugar nessa categoria e originou um outro segundo prémio para uma fotografia que parece caótica por nos transmitir o caos da destruição em Beichuan; um ciclone em Myanmar arrancou o terceiro prémio de reportagem; um vulcão no Chile transmitiu toda a beleza da explosão ao primeiro prémio na categoria Natureza. Há também as guerras nas favelas, as guerras de gangues, o terrorismo em Bombaim. E sobra sangue: sangue no desporto (no judo, no boxe), sangue nos chãos de zonas de conflito e sangue que escorre debaixo da manga dum manifestante em Atenas, numa fotografia de impressionante composição: em primeiro plano, à direita, a manga dum blaser, o sangue que escorre pela mão, a mão que segura um dossiê, mão de professor. À sua frente, os escudos da polícia de choque: o sangue é o índice da violência e da irredutibilidade das posições.

Todavia, dentre todas as imagens, o júri escolheu para fotografia do ano a imagem de um polícia dentro de uma casa desocupada. Ele está armado, aponta a arma para uma divisão da casa que não podemos ver. O chão da divisão em que nos encontramos com ele está caótico: caixotes espalhados, lixo, papéis, mobílias velhas. Na parede ao fundo, um aplique torto; na casa de banho pela porta aberta em frente, a mesma desarrumação. Só a legenda nos pode explicar esta imagem marcada por uma violência que já passou (a desarrumação) e por uma violência que poderá chegar (o polícia que se precavê de arma apontada). Esta guerra é outra, diz a legenda: “Economia dos EUA em Crise: depois dum despejo, o detective Robert Kole tem de garantir que os moradores saíram da sua casa. Cleveland, Ohio, 26 de Março”.

Esta guerra chegou ao interior dos Estados Unidos. É mesmo uma guerra, vê-se os indícios dela. E é um drama, vê-se pela composição: a parede do fundo é como um pano de teatro paralelo aos espectadores (nós que vemos a fotografia), há portas como no teatro, há um movimento subtil do polícia, como os dos actores no palco. Há suspense: que poderá acontecer na outra divisão da casa? Estará alguém lá? Imaginamos que a família saiu, de rastos pela miséria que sobre ela se abateu, e vingando-se, deixando o lixo para quem vier a seguir: mas será que a família desesperada se esconde ainda no quarto ao lado?

A composição como de um palco de teatro favorece a organização harmónica, fornecendo a compreensão estética que compensa o caos dos elementos soltos. E essa harmonia é reforçada por um elemento paradoxal: o polícia, que parece estar do lado direito da imagem, por já ter ultrapassado a porta do fundo, está afinal exactamente no centro geométrico da imagem: o colt que traz à cintura marca o ponto em que as diagonais se intersectam.

Lemos as imagens da esquerda para a direita, e aqui essa narrativa só nos promete incerteza e a hipótese de conflito e de medo. Como nos quadros, a luz vem da esquerda, do passado, dos tempos alegres em que a família viveu nesta casa; a escuridão está à frente do polícia e por isso à nossa frente, do lado direito, é o negro para lá da porta, o Adamastor da crise. É para lá que o polícia aponta a arma: para o futuro, para a crise, para uma guerra em potência dentro das nossas casas — aquele vazio negro é o túnel sem luz ao fundo que nos ameaça a todos. Esta fotografia é um ícone da crise que chegou, da crise que está, da guerra das famílias contra a crise, o Adamastor, o monstro negro. É o ícone do fim da era Bush e das suas guerras pelo mundo fora, é o ícone do início da era Obama, da guerra interior com que se vêem a braços milhares de milhões de famílias, empresas, polícias e policiados da América e de cada país do mundo.

Eduardo Cintra Torres




3 comentários:

José Carlos Marques disse...

Eu vi as imagens muito depressa. Vi-as todas, mas para algumas não olhei com atenção. De qualquer maneira, acho que merecem que se levante aqui uma questão: porque será que, cada vez mais, se fogem às imagens "bonitas" para apresentar apenas o horror? O "feio".
O mundo é apenas feito de violência? As notícias que povoam os jornais são apenas as más? E as outras imagens, onde estão?

Longe vão os tempos do beijo, do abraço, do descanso. Parece que vivemos agora num filme de suspence, onde aquele final que nos permite voltar a respirar não chega a acontecer...

Anónimo disse...

Talvez não estejamos propriamente no paraíso! E mesmo se estivermos, o paraíso tem armadilhas e artimanhas que nos podem fazer perde-lo. Ou quem sabe, se fotografando o lado negro do mundo este se torne mais suportável e se descubra em tudo isto um outro tipo de "beleza", menos literal e esperada. Talvez as outras potenciais fotografias para que apelas, mais idílicas e repousantes, esperem ser por ti acolhidas, porque essa é a tua sensibilidade. Creio que vivemos um momento de grandes contrastes. Ou se retiram à vida as rugas, as olheiras e os pontos negros próprios do viver, ou se mostra a crua realidade sem filtros embelezadores e só isso figura. Mas em tudo isto pode haver talento, sensibilidade, arte e autenticidade. O importante é não fazer nada apenas por moda, a menos que seja a "moda" o que o que garante a sobrevivência dos filhos. Por vezes sinto-me preocupada comigo. Antes de ler o teu comentário via e revia as imagens que passavam no monitor, pois sempre me encanta ver as imagens a passar!Por vezes é tão excitante como andar de carrossel, e mais do que o sofrimento e o horror que elas espelham, observava-as eu em termos de composição, de luz, de estilos diferenciados entre uns fotógrafos e outros, e nalgumas encontrava de facto uma "perturbante beleza" e uma inteligente composição. Mas isto talvez seja mesmo grave!!! Depois reflectia sobre o motivo que me faz arrepiar a pele e chorar com muito mais facilidade e espontaneamente, uma fotografia como a Paolo Pellegrin, Michey Rourke com o cão loki, no Blake Hotel ( post do dia 9 de Fevereiro ), do que o gritante sofrimento trazido até nós por Gleg Garanich ( foto 21), ou Bo Bor, ao mesmo tempo que sentia a fotografia de Yannis Kolesidis esmagadoramente forte e desconfortável.Com isto, talvez comece a perceber o início do que me motiva nesta aventura da imagem fotográfica e o poder singular do fragmento. Mas o que dizes, parece-me pertinente e válido. Oxalá que esta minha paixão ou este vicio pelo carrossel onde há sempre muitos tipos de figuras, não me façam em última instância,gelar o coração e esquecer o sol que todos os dias se levanta além deste fumo negro que paira sobre o mundo.

Atentamente,

( Aqui o tratamento por "Tu" não é de modo algum sinónimo de falta de respeito por uma pessoa que desconheço, mas hoje não consigo tratar ninguém por Senhor. Há dias…)

Pólo de Fotografia disse...

excelente análise. recomendamos no nosso blog: www.polodefotografia.com.br

abraço

 
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