O crítico do Público Eduardo Cintra Torres é um espectador atento à criação fotográfica contemporânea e ao fotojornalismo em particular.
Eis o texto que escreveu para o Arte Photographica sobre os prémios World Press Photo 2008 ontem divulgados:
“Não há luz ao fundo da porta do fundo das nossas casas
O Iraque e o Afeganistão desapareceram dos prémios World Press Photo relativos a 2008. Não há entre as fotografias premiadas nada da guerra no Iraque (mas ainda há guerra no Iraque? Esta semana, em Badgad, o movimento do anti-american radical cleric Al-Sadr, como lhe chama a imprensa americana, patrocinou uma boa exposição de pintura contemporânea iraquiana). Do Afeganistão, nada também. E do Médio Oriente, onde ocorreram duros combates entre Israel e o Hamas, chega apenas uma fotografia, anterior ao conflito. É uma imagem de perturbadora beleza: quatro manifestantes palestinos procuram abrigar-se debaixo de uma oliveira isolada enquanto pelo chão se espalha uma nuvem de gás lacrimogéneo; a mancha branca do gás é bela, igual aos farrapos de nuvens verdadeiras no céu azul com que parece misturar-se, o nevoeiro lacrimoéneo quer esconder o mal que alberga; e a oliveira, tão bonita, símbolo de paz, no meio da pequena clareira onde o gás ainda não chegou, parece o antídoto contra o gás venenoso, mas, na sua velhice, enrosca-se em si mesma, dando um movimento adicional à imagem que nos diz como a paz é torta e difícil naquele lugar. A fotografia não ganhou o primeiro prémio, nem as fotografias do conflito mais ilustrado deste ano, o da guerra na Geórgia, que aos tanques e militares preferiram gente que chora mortos: o fotojornalismo, como a pintura desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial, não quer saber de vitórias militares, apenas vê derrotas humanas.
É o caso das guerras tribais no Quénia, que motivaram imagens premiadas, fotografias extraordinárias que mostram que não há ali diferença entre vencidos e vencedores, os que matam e os que morrem são intermutáveis, é terrivelmente difícil sentir pena, apenas se sente horror pelo grau zero a que chega o valor da vida: aquela criança que à porta de casa agita as mãos quando chega o assassino de cacete na mão tem o horror da morte espelhado no gesto.
Há ainda outras guerras destacadas pelos prémios deste ano. São as guerras da natureza contra o homem, a que chamamos catástrofes naturais: um terramoto na China premiou um instantâneo com o primeiro lugar nessa categoria e originou um outro segundo prémio para uma fotografia que parece caótica por nos transmitir o caos da destruição em Beichuan; um ciclone em Myanmar arrancou o terceiro prémio de reportagem; um vulcão no Chile transmitiu toda a beleza da explosão ao primeiro prémio na categoria Natureza. Há também as guerras nas favelas, as guerras de gangues, o terrorismo em Bombaim. E sobra sangue: sangue no desporto (no judo, no boxe), sangue nos chãos de zonas de conflito e sangue que escorre debaixo da manga dum manifestante em Atenas, numa fotografia de impressionante composição: em primeiro plano, à direita, a manga dum blaser, o sangue que escorre pela mão, a mão que segura um dossiê, mão de professor. À sua frente, os escudos da polícia de choque: o sangue é o índice da violência e da irredutibilidade das posições.
Todavia, dentre todas as imagens, o júri escolheu para fotografia do ano a imagem de um polícia dentro de uma casa desocupada. Ele está armado, aponta a arma para uma divisão da casa que não podemos ver. O chão da divisão em que nos encontramos com ele está caótico: caixotes espalhados, lixo, papéis, mobílias velhas. Na parede ao fundo, um aplique torto; na casa de banho pela porta aberta em frente, a mesma desarrumação. Só a legenda nos pode explicar esta imagem marcada por uma violência que já passou (a desarrumação) e por uma violência que poderá chegar (o polícia que se precavê de arma apontada). Esta guerra é outra, diz a legenda: “Economia dos EUA em Crise: depois dum despejo, o detective Robert Kole tem de garantir que os moradores saíram da sua casa. Cleveland, Ohio, 26 de Março”.
Esta guerra chegou ao interior dos Estados Unidos. É mesmo uma guerra, vê-se os indícios dela. E é um drama, vê-se pela composição: a parede do fundo é como um pano de teatro paralelo aos espectadores (nós que vemos a fotografia), há portas como no teatro, há um movimento subtil do polícia, como os dos actores no palco. Há suspense: que poderá acontecer na outra divisão da casa? Estará alguém lá? Imaginamos que a família saiu, de rastos pela miséria que sobre ela se abateu, e vingando-se, deixando o lixo para quem vier a seguir: mas será que a família desesperada se esconde ainda no quarto ao lado?
A composição como de um palco de teatro favorece a organização harmónica, fornecendo a compreensão estética que compensa o caos dos elementos soltos. E essa harmonia é reforçada por um elemento paradoxal: o polícia, que parece estar do lado direito da imagem, por já ter ultrapassado a porta do fundo, está afinal exactamente no centro geométrico da imagem: o colt que traz à cintura marca o ponto em que as diagonais se intersectam.
Lemos as imagens da esquerda para a direita, e aqui essa narrativa só nos promete incerteza e a hipótese de conflito e de medo. Como nos quadros, a luz vem da esquerda, do passado, dos tempos alegres em que a família viveu nesta casa; a escuridão está à frente do polícia e por isso à nossa frente, do lado direito, é o negro para lá da porta, o Adamastor da crise. É para lá que o polícia aponta a arma: para o futuro, para a crise, para uma guerra em potência dentro das nossas casas — aquele vazio negro é o túnel sem luz ao fundo que nos ameaça a todos. Esta fotografia é um ícone da crise que chegou, da crise que está, da guerra das famílias contra a crise, o Adamastor, o monstro negro. É o ícone do fim da era Bush e das suas guerras pelo mundo fora, é o ícone do início da era Obama, da guerra interior com que se vêem a braços milhares de milhões de famílias, empresas, polícias e policiados da América e de cada país do mundo. ”
Eduardo Cintra Torres
3 comentários:
Eu vi as imagens muito depressa. Vi-as todas, mas para algumas não olhei com atenção. De qualquer maneira, acho que merecem que se levante aqui uma questão: porque será que, cada vez mais, se fogem às imagens "bonitas" para apresentar apenas o horror? O "feio".
O mundo é apenas feito de violência? As notícias que povoam os jornais são apenas as más? E as outras imagens, onde estão?
Longe vão os tempos do beijo, do abraço, do descanso. Parece que vivemos agora num filme de suspence, onde aquele final que nos permite voltar a respirar não chega a acontecer...
Talvez não estejamos propriamente no paraíso! E mesmo se estivermos, o paraíso tem armadilhas e artimanhas que nos podem fazer perde-lo. Ou quem sabe, se fotografando o lado negro do mundo este se torne mais suportável e se descubra em tudo isto um outro tipo de "beleza", menos literal e esperada. Talvez as outras potenciais fotografias para que apelas, mais idílicas e repousantes, esperem ser por ti acolhidas, porque essa é a tua sensibilidade. Creio que vivemos um momento de grandes contrastes. Ou se retiram à vida as rugas, as olheiras e os pontos negros próprios do viver, ou se mostra a crua realidade sem filtros embelezadores e só isso figura. Mas em tudo isto pode haver talento, sensibilidade, arte e autenticidade. O importante é não fazer nada apenas por moda, a menos que seja a "moda" o que o que garante a sobrevivência dos filhos. Por vezes sinto-me preocupada comigo. Antes de ler o teu comentário via e revia as imagens que passavam no monitor, pois sempre me encanta ver as imagens a passar!Por vezes é tão excitante como andar de carrossel, e mais do que o sofrimento e o horror que elas espelham, observava-as eu em termos de composição, de luz, de estilos diferenciados entre uns fotógrafos e outros, e nalgumas encontrava de facto uma "perturbante beleza" e uma inteligente composição. Mas isto talvez seja mesmo grave!!! Depois reflectia sobre o motivo que me faz arrepiar a pele e chorar com muito mais facilidade e espontaneamente, uma fotografia como a Paolo Pellegrin, Michey Rourke com o cão loki, no Blake Hotel ( post do dia 9 de Fevereiro ), do que o gritante sofrimento trazido até nós por Gleg Garanich ( foto 21), ou Bo Bor, ao mesmo tempo que sentia a fotografia de Yannis Kolesidis esmagadoramente forte e desconfortável.Com isto, talvez comece a perceber o início do que me motiva nesta aventura da imagem fotográfica e o poder singular do fragmento. Mas o que dizes, parece-me pertinente e válido. Oxalá que esta minha paixão ou este vicio pelo carrossel onde há sempre muitos tipos de figuras, não me façam em última instância,gelar o coração e esquecer o sol que todos os dias se levanta além deste fumo negro que paira sobre o mundo.
Atentamente,
( Aqui o tratamento por "Tu" não é de modo algum sinónimo de falta de respeito por uma pessoa que desconheço, mas hoje não consigo tratar ninguém por Senhor. Há dias…)
excelente análise. recomendamos no nosso blog: www.polodefotografia.com.br
abraço
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