27 maio, 2008

/uma fotografia, um nome\


Virgílio Ferreira, da série Peregrinos do Quotidiano
(© Virgílio Ferreira)

Do baú dos mistérios Virgílio Ferreira retirou os Peregrinos do Quotidiano, série a que pertence esta imagem. Num contexto feérico, que sugere transparências e vidros na inversão das palavras, um jovem caminha para nós, alheio a tudo, mas talvez não à sua própria imagem. A série foi levantada em diversas cidades do Oriente, mas esta cena é-nos familiar, é bem nossa.

Como um executivo juvenilmente negligente, envolvido pela agitação de uma cor verde que cintila, atravessa sem ver uma cidade da nossa cultura da comunicação. Não a aldeia global de uma comunidade utópica, mas a desertificação do gregário: a cidade, qualquer cidade como esta, reduz-se a um imenso átrio de informação, o espaço público afirma-se para lá do fora, inquieta a noite dos seus utentes com a sua presença compulsivamente ligeira; a sua presença permanece subliminar nos desejos e determinações de cada um. É, ainda, uma cidade que se oferece como espectáculo onde os homens entram e saem em diferentes cenários devidamente esclarecidos. No espaço privado que o deve esperar, o jovem da imagem irá desencadear, voluntariamente, um sem número de canais que abrem a constância da rede de informação que nos parece tutelar.

É um contexto asfixiante, mas é o nosso e reverenciado. As imagens fotográficas renovaram a paisagem, que perdeu o bucolismo da beleza de contemplação, mas ganhou o esplendor da invasão dos sentidos. A festa, aqui e em qualquer lugar, é sempre uma manifestação do excesso, uma encomenda de cor e ruído imaginado, - adrenalina e uma viagem consigo mesmo.

Esta fotografia insinua que a festa dos sentidos nos absorve e nos deixa indiferentes. Talvez dê a ligeireza do passo daquele jovem, porque a festa dos sentidos é uma atmosfera que entra com passos leves, engole-nos a percepção, mas deixa marcas, cobra-nos o ritmo e o brilho nos olhos. Sabemos que matou a festa da fundação, onde cada um se pensa outro, no meio do grupo; sabemos que trouxe consigo a banalidade do sentir, a parede de vidro da habituação do corpo, sem imaginário fiável. É vista, ainda, como uma fábrica e solidões, quando sentimos que não nos pertence e a comunidade nos parece tão instável como um rebanho de linfócitos numa lamela de laboratório: recebe informação e dispersa para nenhures. Então, a festa dos sentidos é negra, é uma doença, uma febre.

O culto da efemeridade dá-se bem com estes anúncios, estes avisos e estas luzes coloridas no escuro. Virgílio Ferreira, tendo como simulação apenas o projecto, faz fotografia directa, controla o visível e o invisível, não usa o digital e o computador. Dá-nos pois a realidade envolvida pelo seu imaginário. O que passa necessariamente por estes efeitos bem reais, da globalização do mundo e dos homens. À noite, na indefinição dos equipamentos de apoio, rodeia-nos a floresta rude, imperativa, sem luvas brancas, da informação. Gostaríamos de passar por ela com a atrevida indiferença do jovem com a sua esvoaçante luz verde, tão irreal como um resplendor. Porque, afinal, este mundo é muito belo e pode transmitir ao homem a inefabilidade do existir num passo leve e ligeiro. Virgílio Ferreira colocou o seu personagem a passar ao lado de tudo, pois entendeu que o sujeito da imagem não é ele, mas o mundo que o rodeia. Não se alterou, ao que vemos, o tema da paisagem.

Maria do Carmo Serén

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