“O homem que levantou quatro paredes e sobre elas colocou um tecto, criou o vazio. Para existir (existir?), o vazio necessita que alguma coisa o limite, pela óbvia razão de que são os limites que dão forma ao vazio, que o encerram, que não o deixam escapar-se. Por outras palavras ainda: derrubem-se as paredes e o tecto de uma casa, de um teatro, de uma igreja, e o vazio desaparecerá. O mundo, poroso pela sua estrutura molecular, é-o também na sequência interminável dessa outra espécie de células que são os edifícios, onde a estabilidade do vazio é constantemente perturbada e interrompida pelas presenças humanas. Ao vazio não lhe importam móveis, objectos ou decorações, quaisquer que sejam. Assimila-os e neutraliza-os no mesmo instante em que são colocados no espaço que ocupa. Mas que uma só pessoa se vá sentar, por exemplo, na cadeira de um cinema, e já passa a ser impossível falar de vazio.
Não haverá ali mais que um espectador, mas o cinema deixou de estar vazio. E não teria qualquer sentido dizer que está “quase vazio” porque um estado de “quase vazio” é coisa que, em rigor, não existe. O vazio não contemporiza: ou é, ou não é. E, tanto num caso como
no outro, absolutamente.
Ao decidir fotografar interiores de alguns dos nossos edifícios mais conhecidos e emblemáticos, Candida Höfer não pretendeu juntar umas quantas imagens à colecção de milhares de bilhetes postais de que já dispomos. Queria, sim, capturar o vazio, imobilizá-lo, torná-lo visível. Tarefa impossível numa fotografia de dimensões habituais, por assim dizer domésticas, em que somente seríamos capazes de perceber o que se encontrava no espaço fotografado, e nunca o ambicionado vazio. Como fazê-lo então aparecer?
Só haveria uma maneira, e Candida Höfer descobriu-a ampliando a imagem, provavelmente por meio de ensaios sucessivos, mais, mais, mais, até encontrar o que procurava. E, de repente, aí estava ele, o vazio. Um vazio de que o observador terá o cuidado de não se aproximar demasiado, sob pena de fazê-lo desaparecer (já sabemos que vazio e presença humana são inconciliáveis…). Um vazio que, se é permitida uma contribuição da minha parte, se nos apresenta acompanhado por algo em que Candida Höfer talvez não haja pensado (ela o dirá): o silêncio. Não há novidade nenhuma em dizer que toda a fotografia é silenciosa, mas nestas imagens gigantescas o silêncio serve-se do vazio para se tornar mais profundo, do mesmo passo que o vazio se serve do silêncio para se tornar, agora sim, absoluto. O vazio, o silêncio.”
José Saramago, catálogo da exposição Em Portugal, de Candida Höfer
Shelley Rice, autora de um dos textos do catálogo da primeira grande exposição de Candida Höfer em Portugal, dá hoje (às 17h00) uma conferência sobre a obra da fotógrafa alemã na sala polivalente do Centro de exposições do CCB (entrada livre).
Rice é Professora Associada de Arte na Universidade de Nova Iorque, curadora de Deconstruction/Reconstruction (The New Museum, 1980) e Inverted Odysseys (University Grey Art Gallery, 1999-2000), e autora de várias publicações sobre fotografia como Inverted Odysseys: Claude Cahun, Maya Deren and Cindy Sherman ou Parisian Views ou co-autora de obras de referência como A New History of Photography, Álbum De Franca e Sandi Felldman: Sometimes with Shadows. O texto publicado no catálogo da exposição Candida Höfer chama-se Depth, Contained (Profundidade, Contida).
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