Paisagem do rio Douro, 2012© Nelson d’Aires |
“Nelson d’Aires viu escolhida uma
outra e poderosa fotografia sua para a enorme coletânea que o projeto “Entre
Margens” realizou para o Museu do Douro e que foi publicada em 2013. Essa é uma
imagem fortemente simbólica e alegórica, construída a partir de um
significativo número de signos. Sérgio Gomes, ao escrever sobre as imagens
publicadas, mostra que gostou dela e ressalta ainda uma outra fotografia deste
fotógrafo, (os três cães de guarda), de que também gostei muito.
Ninguém pode resistir ao tempo e à
repetição de motivos que se tornam óbvios, como ninguém pode resistir ao
impulso para o concetualismo, para a esperança de que as imagens nos digam algo
de novo, nos interpelem para nos fazer crescer. Só que esse intercâmbio com a
imagem depende muito do que guardamos, dos impulsos que nos orientam e dos
afetos que nos transcendem: é raro que vejamos as fotos da mesma maneira. O que
é bom, mostra a riqueza de cada imagem.
Esta imagem que salientei, mostra
um Douro diluído, uma região quase líquida na oferta dos seus detalhes. Ao
esvair-se nos seus detalhes, ao proporcionar mais uma visão de conjunto, uma
síntese determinada pela conceção, parece uma pintura que, pelo ajuntamento das
tonalidades, geometrizando o espaço dos volumes acastelados, tendemos a situar
nas pinturas breves, com grandes manchas de sugestão, dos anos 50 e 60 do
século XX. Se tivesse sido escolhida para capa da obra referida, pareceria uma
obra de arte talvez um pouco tradicional.
Acho que o Sérgio, na sua procura
de novidade criativa, a chamaria de neo-pictorialista.
Nestes nossos tempos do digital, o
neo-pictorialismo era inevitável, já que os programas permitem alterações e
simulações tão perfeitas e fáceis que o tornam irresistível.
Ao olhar esta imagem teimamos em
afastá-la dos olhos para que a sua totalidade nos revele do que se trata: a sua
força, é evidente, está na certeza do enquadramento, reside na composição. Tal
como escolheria um pictorialista, que também podia limpar o céu, liquefazer os
contornos, alisar excessos. Mas há incongruências que não podemos excluir: o
primeiro plano é negro, é a luz que tinge as distâncias, que deveria graduar as
tonalidades e não o faz. É uma luz fraca que se irresponsabiliza da tendência
dos nossos olhos. Nenhum pintor marcaria a negro este avançado primeiro plano,
nem deixaria o irregular mas nitidamente distinto contorno da vegetação em contra-luz. Não
tem a evidência sintética de uma conceção de paisagem pictórica, há ineludíveis
sinais da imagem fotográfica, do “cut” bem realizado, que garante o
prolongamento do real para lá das margens. É a luz, uma luz ténue de origem ou
fim de dia, como onda e como agregado de partículas que permite a formação das
distâncias ao incidir nos obstáculos.
Os nossos olhos, a nossa memória
saturada de imagens idênticas, pictóricas ou fotográficas deste Douro
mitificado mas real, não deixam de nos indiciar perplexidades frente a estas
congruências e incongruências. As imagens repetem-se, mas já é difícil
encontrar os lugares de Biel ou de Alvão. E os olhares também se alteram. A sua
originalidade e a sua estranheza podem habitar a fronteira do que foi e do que
é. E é aí, na fronteira de culturas e olhares que a imagem nos perturba.
Em Nelson d’Aires domina o olhar
social que é, ao mesmo tempo, um olhar antropológico, atento aos rituais das
coisas e da memória. Sugere inevitavelmente o mito fundador das coisas e das
ideias e que ainda envolve os nossos gestos e as nossas crenças. Este Douro
dissolve-se nas mitologias que a própria imagem foi adensando, mas que não
criou: a fragilidade do homem frente a um natural poderoso e difícil, que não
domina mas quer dominar. É a luta, a velha luta do homem, e esse é um tema de
Nelson d’Aires.”
Maria do Carmo Serén
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