26 janeiro, 2014

/uma fotografia, um nome\

Paisagem do rio Douro, 2012© Nelson d’Aires

  
Nelson d’Aires viu escolhida uma outra e poderosa fotografia sua para a enorme coletânea que o projeto “Entre Margens” realizou para o Museu do Douro e que foi publicada em 2013. Essa é uma imagem fortemente simbólica e alegórica, construída a partir de um significativo número de signos. Sérgio Gomes, ao escrever sobre as imagens publicadas, mostra que gostou dela e ressalta ainda uma outra fotografia deste fotógrafo, (os três cães de guarda), de que também gostei muito.

Ninguém pode resistir ao tempo e à repetição de motivos que se tornam óbvios, como ninguém pode resistir ao impulso para o concetualismo, para a esperança de que as imagens nos digam algo de novo, nos interpelem para nos fazer crescer. Só que esse intercâmbio com a imagem depende muito do que guardamos, dos impulsos que nos orientam e dos afetos que nos transcendem: é raro que vejamos as fotos da mesma maneira. O que é bom, mostra a riqueza de cada imagem.

Esta imagem que salientei, mostra um Douro diluído, uma região quase líquida na oferta dos seus detalhes. Ao esvair-se nos seus detalhes, ao proporcionar mais uma visão de conjunto, uma síntese determinada pela conceção, parece uma pintura que, pelo ajuntamento das tonalidades, geometrizando o espaço dos volumes acastelados, tendemos a situar nas pinturas breves, com grandes manchas de sugestão, dos anos 50 e 60 do século XX. Se tivesse sido escolhida para capa da obra referida, pareceria uma obra de arte talvez um pouco tradicional.

Acho que o Sérgio, na sua procura de novidade criativa, a chamaria de neo-pictorialista.

Nestes nossos tempos do digital, o neo-pictorialismo era inevitável, já que os programas permitem alterações e simulações tão perfeitas e fáceis que o tornam irresistível.

Ao olhar esta imagem teimamos em afastá-la dos olhos para que a sua totalidade nos revele do que se trata: a sua força, é evidente, está na certeza do enquadramento, reside na composição. Tal como escolheria um pictorialista, que também podia limpar o céu, liquefazer os contornos, alisar excessos. Mas há incongruências que não podemos excluir: o primeiro plano é negro, é a luz que tinge as distâncias, que deveria graduar as tonalidades e não o faz. É uma luz fraca que se irresponsabiliza da tendência dos nossos olhos. Nenhum pintor marcaria a negro este avançado primeiro plano, nem deixaria o irregular mas nitidamente distinto contorno da vegetação em contra-luz. Não tem a evidência sintética de uma conceção de paisagem pictórica, há ineludíveis sinais da imagem fotográfica, do “cut” bem realizado, que garante o prolongamento do real para lá das margens. É a luz, uma luz ténue de origem ou fim de dia, como onda e como agregado de partículas que permite a formação das distâncias ao incidir nos obstáculos.

Os nossos olhos, a nossa memória saturada de imagens idênticas, pictóricas ou fotográficas deste Douro mitificado mas real, não deixam de nos indiciar perplexidades frente a estas congruências e incongruências. As imagens repetem-se, mas já é difícil encontrar os lugares de Biel ou de Alvão. E os olhares também se alteram. A sua originalidade e a sua estranheza podem habitar a fronteira do que foi e do que é. E é aí, na fronteira de culturas e olhares que a imagem nos perturba.

Em Nelson d’Aires domina o olhar social que é, ao mesmo tempo, um olhar antropológico, atento aos rituais das coisas e da memória. Sugere inevitavelmente o mito fundador das coisas e das ideias e que ainda envolve os nossos gestos e as nossas crenças. Este Douro dissolve-se nas mitologias que a própria imagem foi adensando, mas que não criou: a fragilidade do homem frente a um natural poderoso e difícil, que não domina mas quer dominar. É a luta, a velha luta do homem, e esse é um tema de Nelson d’Aires. 

Maria do Carmo Serén



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