05 outubro, 2011

/uma fotografia, um nome\


© João Pinto de Sousa, s/ título, 2011



Diz Serge Tisseron, um homem da psicanálise que escreve sobre fotografia, que uma imagem fotográfica tem ainda, o determinante papel de transformar a reminiscência de uma percepção incompleta, porque temerosa ou demasiado emotiva, numa percepção. Uma imagem semelhante recupera essa reminiscência e dá contorno e relevo aos elementos dispersos que tínhamos interiorizado, sem utilidade de uso. A recuperação de uma imagem eventualmente traumática, com este poder de envoltório da fotografia, pode, em certos casos de neurose, desencadear um caminho de cura.

Em todo o caso uma ou mais imagens fortes que guardamos podem ser recuperadas pela experiência do fotógrafo, que trabalha essencialmente com metáforas e, com a imagem actual, reforçar a perturbação já sentida anteriormente.

Esta imagem fotográfica recolhe uma perspectiva pessoal de João Pinto de Sousa do acabrunhado Mercado do Bolhão, no Porto, mas, para quem tem essa memória, repauta cenas do filme de Alfred Hitchock, Os Pássaros. Como recordamos, pássaros em contra luz, evidentes ou não, alinham-se numa organização compacta, rodeando qualquer arena perigosa. Trata-se de uma metáfora do século XX, um perigo inusitado, provocado por uma situação que contraria a metáfora da ave, livre e atraente, na sua indiferença ou breve aproximação do homem. Aquela atenção, aquele fechar do círculo da distância, o negro das suas figuras indeterminadas, contrariavam radicalmente a nossa versão da distribuição do espaço entre o homem e as aves. É pela estranheza que conservamos a memória, não apenas dos ataques violentos que se sucedem, mas a suspensão do medo provocado pela reunião das aves. É nesse sentido, de medo suspenso, que a metáfora é do século XX e usada pelo cineasta inglês.

O cenário impressivo foi recuperado por João Pinto de Sousa, quer pelo contraluz das aves, o que apenas lhes toca, pois apontamentos de cor e fundos impedem a leitura de preto e branco e dão realidade à perturbação, quer pela recriação da temida arena de confrontação. Há pássaros no primeiro plano, em planos sucessivos até o espaço vazio do centro; do outro lado, novas aves; uma delas, apenas sombra muito precisa, traduz a velha imagem, do mito helénico, a sereia-pássaro.

Não interessa, sequer, que admitamos que se trata de pacíficas pombas; o espaço sacrificial e de demência está criado, o sentido de inversão de domínio tornou-se claro.

Estamos a rever Os Pássaros e, como então, tudo surge num quotidiano pacífico.
É esta a metáfora que ainda não se esgotou. O homem mantém o seu temor contra qualquer situação diferente daquelas com que traduz a Natureza. Domina-a, explora-a, altera-a e sumaria as suas reacções. Quando ela não responde ao seu modelo, surge a situação de estranheza. Precisamente porque, ao contrário do olhar sobre a pintura, com a imagem, fotográfica a datamos e a interrogamos, o seu poder emotivo é mais forte, mais perturbador e, por isso mesmo, tem mais sedução.

Maria do Carmo Serén

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