07 fevereiro, 2014

Leica e Portugal

 Hans-Michael Koetzle
© Enric Vives-Rubio/PÚBLICO


Fotografia portuguesa vai estar grande no jubileu da Leica


O nascimento da Leica, em 1914, é um dos marcos da história da fotografia. A marca alemã vai assinalar o jubileu com uma grande exposição a inaugurar em Outubro. Imagens de Paulo Nozolino e de um grupo de fotógrafos dos anos 50 formarão a grande embaixada portuguesa em Hamburgo. O Museu do Chiado tentará depois trazer a mostra para Portugal


Quando, em 2010, Hans-Michael Koetzle viu a exposição Batalha de Sombras em Cuenca, Espanha, ficou de boca aberta. Andou deslumbrado de um lado para o outro numa sala da Casa Zavala a perguntar: “Quem são estes fotógrafos?” “De onde vieram?” A comissária Emília Tavares, do Museu do Chiado, estava lá para lhe responder. E disse-lhe que eram portugueses e que tinham fotografado sobretudo nos anos 50 e 60. Chamavam-se Gérard Castello-Lopes, Victor Palla, Varela Pécurto, Eduardo Harrington Sena, Sena da Silva, Fernando Taborda... Nesse dia, o jornalista e investigador alemão especializado em história e teoria da fotografia apaixonou-se por aquelas imagens e ficou com mais uma pergunta na cabeça: “Terão sido feitas com [câmaras] Leica?” Umas sim, outras não. Mas esse número também não foi importante quando, no final do ano passado, decidiu viajar para Portugal à procura de mais fotografias daquele período para incluir na grande exposição do jubileu da Leica que está a preparar para este ano. Em Lisboa, Koetzle, que foi director da revista da Leica durante anos e que tem vasta obra publicada, confirmou o seu instinto quando viu directamente as provas de alguns dos fotógrafos de Batalha de Sombras. Escolheu cerca de 30 imagens dos que usavam câmaras Leica e descobriu, maravilhado, o trabalho de um amador muito dedicado à mítica marca alemã, Jorge Silva Araújo, de quem trazia apenas uma pista, um artigo publicado na revista da Leica nos anos 50. Na comemoração dos cem anos da invenção da câmara que revolucionou a fotografia e a maneira como vemos o mundo através dela, Portugal será um dos países em grande destaque.

  

Organizar uma exposição do jubileu da Leica - talvez a câmara fotográfica mais emblemática de todas - é um enorme desafio. Por onde começou?

Pelo princípio, em 1914, ano em que Oskar Barnack construiu a sua primeira câmara. Percebemos que a partir desta data o mundo da fotografia mudou. E perguntámo-nos: “Por que não mostrar toda a história da fotografia do século XX numa exposição? Por que não tentar mostrar como o sistema da Leica mudou a maneira como vemos e compreendemos o mundo?” A coisa boa deste ponto de partida é que é uma exposição verdadeiramente internacional. Imaginei como seria fantástico emparelhar diferentes culturas, diferentes abordagens, diferentes gerações, situações e momentos da história. A Leica foi uma câmara sempre voltada para captar a história, as pessoas e a vida. Não é uma câmara de estúdio. É para sair à rua e captar a vida. E a ideia é juntar tudo isto. Claro que fiz uma lista daquilo que considero interessante. E para lhe dar um exemplo que consta nessa relação, há vários fotógrafos portugueses. Fiquei impressionado com uma exposição que vi em Cuenca [Batalha de Sombras, PHotoEspaña 2010]. Aquelas imagens foram uma revelação para mim, fiquei com um excelente catálogo dessa exposição e fiquei sempre a pensar: “Podem ser Leica. Podem ser Leica.” Contactei a curadora [Emília Tavares] e pedi-lhe ajuda para confirmar esse pormenor. Ela acedeu e entre mais de uma dezena de fotógrafos representados, pelo menos cinco usaram Leicas. Isto quer dizer que vamos ter a fotografia portuguesa na exposição, particularmente a dos anos 1950 e 1960, que foram décadas muito fortes. Hoje também é forte, mas fiquei impressionado com a qualidade do que foi feito naquelas duas décadas. Fiquei espantado também ao perceber como, no centro da Europa, sabíamos tão pouco acerca deste nicho. Acho que a exposição do jubileu da Leica será uma extraordinária oportunidade para dar conhecer um grupo de fotógrafos portugueses com um enorme talento. Haverá também espanhóis, italianos… mas os portugueses serão importantes, dado o desconhecimento quase total da sua obra internacionalmente. Não sabíamos nada sobre eles e serão uma parte importante da exposição que se inaugurará em Hamburgo. Já fiz parte da selecção das imagens. Temos fotografias maravilhosas. E, com a ajuda da Emília, descobrimos material novo do fotógrafo Jorge Silva Araújo. Abrimos envelopes que estavam intocados e o que descobrimos é muito bom. Ele era um mestre a imprimir, as provas são incríveis e apesar de ser amador via-se que adorava o que fazia na fotografia. Verificamos que estava muito bem informado sobre os melhores livros e revistas de fotografia da época e também quis deixar o seu contributo.

E de que época são essas fotografias?

As melhores são dos anos 1950. Também vimos imagens dos anos 1960, mas as melhores são dos anos 50. Também teremos fotografia contemporânea, com fotografias de Paulo Nozolino.

Que dimensão terá a exposição em termos de imagens?

Teremos entre 400 a 500 fotografias. Vamos começar em 1914, porque Oskar Barnack começou logo a fotografar com a sua primeira câmara. Atravessaremos todo o século e haverá secções de países como Portugal. Haverá cerca de 30 obras de fotógrafos portugueses. Teremos cerca de cem autores de todo o mundo. Mas não me preocupei com proporções geográficas.

Como será dividida?

Por abordagens estéticas. Por exemplo, depois da II Guerra houve fotografia humanista em França, fotografia neo-realista na Itália, novo subjectivismo na Alemanha e uma fotografia próxima da tradição humanista francesa em Portugal. E a mesma coisa em Espanha. Isto dá uma mistura de diferentes estéticas em geografias diferentes. Teremos obviamente o fotojornalismo antes e depois da II Guerra. O período vanguardista. As agências de fotografia dos anos 1950. A cultura dos fotolivros. A cor dos anos 1970 e 1980. A moda. E a fotografia contemporânea. São cerca de 14 “capítulos”, onde caberá também o cinema.
  

Qual foi a principal revolução que a câmara Leica trouxe à fotografia?

A primeira câmara foi idealizada em 1914, mas com a I Grande Guerra não foi possível produzi-la. E só 1925 é que a primeira Leica foi lançada no mercado. Era pequena, muito mais pequena do que as câmaras que existiam. A maior parte dos fotojornalistas usavam câmaras com negativos de vidro. Depois de disparar tinham de mudar o negativo – não havia momento decisivo. A Leica era rápida e tinha 36 imagens disponíveis. Funcionava como uma extensão dos braços e era possível tê-la sempre à mão para disparar a qualquer momento, um pouco à semelhança do que se faz hoje com os smartphones. A Leica não foi a primeira a usar filme de 35mm. Mas a grande diferença é que pela primeira vez uma empresa foi capaz de fazer uma câmara que era um produto perfeito. A empresa tinha uma grande experiência na óptica porque nasceu da Leitz, que fazia microscópios. O fabrico destes instrumentos tinha de ser muito, muito preciso. Um saber que foi levado para esta pequena câmara fotográfica, expoente máximo da tecnologia. A lente era perfeita, o negativo era maior, as funcionalidades eram muito precisas. Adaptava-se bem às mãos, podia segurar-se sem se tremer. E foi feita para capturar a curta distância. Com a Leica, toda a maneira de capturar o mundo mudou. Os fotógrafos tornaram-se mais rápidos, mais próximos do sujeito e puderam trabalhar em sequências de 36 elementos – se perdessem um momento decisivo, podiam rapidamente procurar outro, e outro, e outro. Começou a ser possível experimentar.

Quer dizer que a principal vantagem da Leica “se resumia” à eficácia com que respondeu a uma cultura fotográfica que pedia outras ferramentas…

Sim, era um objecto extraordinariamente bem desenhado. Quando se fala no nascimento desta câmara, é preciso não esquecer que se vivia no tempo da Bauhaus, que se regia segundo o princípio “menos é mais”. E foi isso que Oskar Barnack fez. Ele não era membro da Bauhaus, mas tinha o espírito de fazer algo que utilizasse o mínimo daquilo que era necessário e nada mais. Este espírito resultou num objecto tão purista, tão bem desenhado que fez com que durasse até hoje. A Leica é como a Porsche – é sempre a mesma, apenas com algumas mudanças. Mas o mais importante é que dentro de um objecto muito bem desenhado temos uma câmara que funciona muito bem e que é capaz de captar o mundo nas suas mais diversas variantes. 1925, foi o ano em que Eseinstein estreou O Couraçado de Potemkin, na cidade de Mannheim surgiram exposições de fotografia com abordagens documentais diferentes, a nova objectividade. Foi um ano rico visualmente e Oskar Barnack respondeu com o lançamento da Leica. Claro que os fotógrafos profissionais tiveram alguma resistência. Achavam as Leica parecidas com camaras de brincar. Mas os amadores começaram a descobrir as suas virtudes. Houve grandes nomes que se aliaram desde cedo a ela – Henri Cartier-Bresson, Alexsandr Rodchenko, László Moholy-Nagy e muitos artistas de vanguarda. Havia outro pormenor que impressionava – um dos olhos podia controlar sempre o que se passava à volta e quando surgia o momento… click!

Mas o que trouxe de realmente novo?

Foi sobretudo a possibilidade de encarar a reportagem de outra forma - através de múltiplas imagens e não de uma. Surgiu uma nova maneira de contar uma história, em sequência, de uma forma muito mais… cinematográfica. Muitos amadores – ou, digamos, fotógrafos que vieram de outras profissões – ficaram encantados com esta abordagem. No centro da Europa havia gente muito bem treinada a olhar nos anos 1920, 1930. Um dos exemplos mais famosos é de Erich Salomon que era advogado. Fotografava com uma Ermanox com pequenos negativos de vidro, que tinha uma boa óptica. Salomon fotografava no tribunal durante os processos mas tinha de o fazer sem ser notado. O que quer dizer que tinha de ir constantemente à casa-de-banho para trocar os negativos de vidro da sua máquina, tarefa pouco prática. Mudou para a Leica em 1932 e começou a oferecer às revistas ilustradas da época, como a alemã Berliner Illustrirte Zeitung ou a francesa Vu, reportagens fotográficas completas – uma nova maneira de fazer as coisas. Na altura havia bons directores de arte nas revistas, como o Alexander Liberman, na Vu. Salomon fotografava à noite, festas, eventos sociais. Mas talvez um dos mais famosos a fotografar com Leica tenha sido Robert Capa que com o David Seymour “Chim” e Gerda Taro cobriram a Guerra Civil Espanhola. Muitos dizem que esta foi a primeira guerra onde os fotógrafos mostraram exactamente o que se estava a passar, o primeiro conflito onde os fotógrafos estiveram sempre muito perto dos acontecimentos. Antes, os fotógrafos apanhavam apenas o que restava das batalhas, a destruição, pessoas mortas, bombardeamentos. Mas não estavam presentes quando a batalha se desenrolava.
Muitas vezes, a forma de trabalhar com Leica fazia com que as fotografias não saíssem perfeitas, ficavam desfocadas. Mas isso dava-lhes autenticidade, dinâmica. Há um bom exemplo de como este drama se mostra com uma fotografia de 1932 que Capa tirou numa conferência política no momento em que um jornalista resiste a uma ordem de prisão. Esse registo está completamente desfocado e quase não se percebe nada na imagem, mas ao mesmo tempo é estranho, tem muita dinâmica e capta todo o drama do momento. A Leica introduziu uma maneira completamente diferente de ver o mundo.

É o momento em que a fotografia deixou de estar congelada?

Completamente. Deixou de estar congelada, deixou de ser apenas encenada. Passou a haver vida na fotografia de uma forma mais… natural. Já havia fotógrafos a tentar trazer esta nova forma de estar na fotografia e a Leica deu-lhes a ferramenta perfeita. Trabalhava bem, era silenciosa, não precisava de flash. Foi importante para fotografar em locais onde era preciso ter estas armas – em tribunais, em igrejas, em cafés e bares nocturnos.

E a Leica tornou-se famosa imediatamente?
Não. Em 1925 não houve grande reacção. Nesse ano produziram-se cerca de 1000 câmaras. O sucesso veio em 1927-1928. Pessoas como Rodchenko, artistas da Bauhaus começaram a usá-la. Gisele Freund foi outra das famosas a usá-la. Quando escapou aos nazis, em 1933, foi para França, onde trabalhou como fotógrafa. Há uma história muito conhecida que mostra como levou algum tempo o reconhecimento. Freund teve um trabalho que implicava fazer fotografias na Biblioteca Nacional de França. Quando a conheceu, o director perguntou-lhe: “O que é isso?” Ela: “É a minha câmara.” Ele: “Não! Não! Precisamos de alguém profissional!” Ela foi a uma feira da ladra, comprou uma máquina de fole antiga com um tripé e escondeu a Leica lá dentro. Disseram-lhe então que com aquela máquina já podia fotografar. Freund tirou as fotografias com a Leica escondida.

É possível identificar um “estilo Leica” na fotografia?

Sim.

Como?

Para se fotografar com Leica é preciso estar próximo do objecto. Não são câmaras para captar a grandes distâncias. Se se olhar para uma imagem com Roleiflex, por exemplo, elas são muito compostas a partir do centro, muito simétricas. As primeiras imagens do Henri Cartier-Bresson feitas com uma câmara 6x6 são um pouco maçadoras. Com a Leica há dinâmica, há diferentes perspectivas. A fotografia na Leica é definida pelos limites do fotograma. Tive uma experiência estranha há uns tempos quando estava a folhear uma revista Vu. Deparei-me com uma fotografia em dupla página sobre a Guerra Civil de Espanha e pensei “É espantosa! Tem de ser uma imagem feita com Leica. Está tão perto, no chão, via-se uma cabeça, um ombro.” Fui à procura do crédito e não encontrei logo. Mas depois lá o descobri: era uma imagem do Henri Cartier-Bresson. Quando fiz a pesquisa para esta exposição, vi uns dez mil fotolivros. Sentava-me todas as noites e o exercício principal era perceber se aquelas fotografias tinham sido feitas com Leica. Na exposição haverá muitos nomes que não são nada familiares. Não haverá apenas os cartier-bressons.

Encontrou algum trabalho desconhecido internacionalmente que o tenha deslumbrado particularmente?

Sim, muitos. Em particular o de um fotógrafo que se chama Richard Fleishhut. Tirava fotografias em barcos a pessoas famosas. Em Setembro de 1939, Fleishhut estava no SS Columbus perto do porto de Santa Cruz, América Latina. A II Guerra Mundial começou e os ingleses fecharam o porto e a navegação no Atlântico ficou muito controlada. O comandante tentou fugir durante dois meses mas não conseguiu. Até que os alemães decidiram afundar o navio. Todas as pessoas abandonaram o SS Columbus em pequenos barcos e depois assistiu-se a uma explosão. Ele fotografou todos estes acontecimentos com uma Leica, uma história impossível de captar com uma câmara de negativos de vidro. Aqui temos de tudo: a espera, o drama, o movimento, a atrapalhação das pessoas a entrar nos barcos, a explosão e o barco a afundar. Esta sequência é extraordinária e nós vamos mostrá-la.

E o Silva Araújo? De que forma o surpreendeu?

Sabe, no artigo que encontrei dele numa revista da Leica dos anos 50, não fiquei muito impressionado. Era um Portugal muito cliché… mas quando peguei nos negativos e nas provas… aí sim, fiquei muito impressionado. Mas há outros exemplos que ninguém conhece fora de Portugal, como o de Victor Palla. Como já disse, fiquei muito impressionado com a exposição de Cuenca e soube, desde aí, que esse momento iria ser o início do meu love affair com a fotografia portuguesa. Foi por causa daquilo que vi que decidi vir a Portugal. Para uma exposição com esta abrangência, não haveria muitos comissários a viajar para um país por causa de 30 fotografias.

Pelos vistos, parece que valeu a pena a viagem…

Absolutamente. Quando vi as provas do Silva Araújo, tive a certeza de que a viagem valeu bem a pena – é do melhor que existe. E por isso pedi à Emília para fazer alguma investigação para um texto do catálogo. O trabalho de Silva Araújo constará deste livro que terá cerca de 400 páginas. Será um livro de referência em relação ao trabalho fotográfico feito com Leicas.

Há algum país onde se consiga isolar um culto particular em relação à Leica?

Em França, sobretudo por causa da tradição de Cartier-Bresson. Na Rússia, por causa da obra de Rodchenko. Mas o melhor elogio que se pode fazer a uma câmara é copiá-la imediatamente e os russos copiaram-na. E no Japão também, um país onde a marca também é muito forte. Temos obviamente os EUA com o trabalho de Alfred Eisenstaedt, a revista Life e toda a tradição de fotografia de rua dos anos 60, com Garry Winogrand, Joel Meyerowitz. Há também os fotógrafos da agência AP, que até aos anos 50 foram obrigados a usar câmaras speedgraphic que tinham um manuseamento muito mais lento e complicado.

Haverá muitas provas vintage na exposição?

Sim, procurámos ter o maior número de provas vintage. Mas é impossível ter de todos. De Erich Solomon, por exemplo, que foi morto em Auschwitz, o que resta do seu trabalho são cerca de cinco mil negativos. Tivemos de fazer provas novas. De qualquer forma, o que viermos a mostrar será sempre através da melhor impressão possível. Haverá revistas, fotolivros, filmes dos anos 20… Estou a pensar também montar uma sala sem qualquer elemento visual onde se oiça apenas o click da Leica. Este pormenor é muito importante nestas câmaras. Os técnicos da marca conseguem perceber imediatamente se está a funcionar bem colocando o ouvido perto da camara e carregando no disparador.

O som minimal das Leica quase podia estar patenteado…

É verdade. Só o som representa uma parte da relação de amor com a marca. Há poucos objectos no mundo que atraiam tanto amor apenas por causa de um pormenor como este. Talvez seja por causa do nome também: Leica vem de Leitz e de camera. É fantástico. É feminino e de alguma maneira sexy. Os corpos das câmaras foram sempre curvos, suaves, adaptam-se perfeitamente às mãos. A Contax, por exemplo, já não era assim. Era rude, pesada. E depois há tantos fotógrafos que fizeram auto-retratos com elas. O Silva Araújo também tem um. Muitas vezes há espelhos e eles mostram-se orgulhosos de tê-la nas mãos. Outras vezes, há jogos para a tentar escondê-la. A exposição também atravessa estes aspectos, onde a emoção e a performance aparecem.

À imagem do que aconteceu com estes fotógrafos portugueses dos anos 50, que têm sido alvo de uma atenção especial nos últimos anos, acredita que ainda há muito para descobrir (ou redescobir) na fotografia de meados do século XX?
Sim, com certeza. Estamos só no princípio.

Na pesquisa para esta exposição ficou surpreendido com alguma história relacionada com a Leica?

(silêncio) Bem, um dos aspectos que mais me impressionou tem a ver com a própria história da marca. Sobretudo aquele que diz respeito ao período em que vigorou o fascismo no Alemanha. A propósito deste assunto li um livro de um rabi judeu radicado em Londres, Frank Dabba Smith, sobre o perfil da família Leitz que era muito honesta e contra o sistema vigente. Ajudaram muitos técnicos judeus da empresa a sair da Alemanha. Este aspecto deixou-me particularmente feliz. Mesmo antes da guerra, a família Leitz tinha um grande compromisso social. A maneira como trabalhavam e como tratavam os trabalhadores é extraordinária. É uma lição que podemos receber ainda hoje. Mostra que, afinal, nem tudo se resume ao capitalismo e a ganhar dinheiro. O fundamental é tratar bem os trabalhadores. Hoje, chamam-lhes “recursos humanos”, mas ninguém sabe muito bem o que significa isto. Ernest Leitz introduziu a segurança social, construiu casas. E quando a grande crise surgiu em 1924 a razão para lançar definitivamente a Leica foi manter os trabalhadores. Não foi porque tivesse um interesse particular na fotografia. O que se quis foi manter entre três e cinco mil trabalhadores. Quiseram mantê-los. É desse espírito de empreendedorismo que precisamos hoje. Na altura, era muito mais fácil fechar a fábrica e pôr toda a gente na rua. Era o que a economia lhe dizia. Mas houve uma reacção contrária, uma ideia de como seguir em frente lançando um novo produto, uma nova ferramenta para fazer alguma coisa de uma maneira que nunca tinha sido feita.

A agência Magnum e a Leica sempre mantiveram uma relação muito próxima. De que forma o ensaio e o fotojornalismo foram influenciados por este percurso lado a lado?

A Magnum trouxe algumas coisas novas ao fotojornalismo – a primeira das quais foi cooperativismo, o trabalho em conjunto. Depois houve toda a ideia da resistência dos membros fundadores, e lado humanista – não eram simplesmente paparazzi. Eram esquerdistas, revolucionários tinham uma ideia do que era informar pela imagem. Mas era algo mais do que informar – havia um sentido estético ligado à imagem em tudo o que faziam. É por isso que vemos hoje fotografias da Magnum em tudo quanto é museus, não é apenas fotojornalismo. Há sempre algo mais, a começar pela fotografia The Falling Soldier de Robert Capa, que é extraordinária. Todo o corpo de trabalho Henri Cartier-Bresson, o trabalho de “Chim” e dos que vieram depois: René Burri, Werner Bischof… Todos contribuíram para um ideal de fotografia de informação combinada com uma postura e estilos pessoais. E isso é o mais emblemático.

Mas acha que a Leica ajudou a chegar a esta abordagem?

Quase todos tinham este instrumento para contar estórias, o que ajudou a formar uma maneira específica de mostrar a realidade. É um pouco como o Bob Dylan e a guitarra acústica - é um par que casa na perfeição.

Dentro da Magnum, Henri Cartier-Bresson é o nome mais sonante de uma relação entre fotógrafo e o seu equipamento que se pode chamar apaixonada. Será um dos protagonistas do jubileu?

Não muito porque o trabalho dele já é muito conhecido. Para mim, em Cartier-Bresson o interessante é que é o primeiro a dizer que com aquela câmara se podia fazer algo parecido com arte. Importa sublinhar também que o seu livro Images a la Sauvette, que saiu em 1952, teve um enorme impacto junto de outros fotógrafos, incluindo os portugueses. Vou usar Cartier-Bresson como ponto de partida para outras coisas que aconteceram e nada mais.

Há algum outro fotógrafo que gostasse de nomear como exemplo de uma relação tão apaixonada com a sua câmara?

Bruce Davidson, cujo trabalho sobre a comunidade negra nos EUA nos anos 1960 representou um marco importante. É o tipo de projecto a longo prazo que tem um grande peso. Não é só ir ao Alabama fotografar o Martin Luther King e vir embora. Davidson fotografou aquela comunidade durante anos e anos. René Burri fotografou os alemães durante 20 anos. Bruno Barbi os italianos. Robert Frank os americanos. Sergio Larrain a América Latina… Todos estes projectos a longo termo formam uma cultura de imagem diferente. Não era só tirar uma boa fotografia e ir embora. Era preciso seguir alguma coisa para o resto da vida. Há ainda a Nicarágua captada por Susan Meiselas. Anders Petersen, no Café Lehmitz. Christer Strömholm, em Paris, Ed van der Elsken… todos com Leica, com uma relação forte com aquilo que faziam. Strömholm contou-me que antes de começar a fotografar nos bares de travestis de Paris, chegava lá e punha a câmara em cima do balcão sem fazer mais nada. Durante dias fez a mesma coisa até que lhe perguntaram “O que é isso?” “É a minha câmara.” “E não quer fazer fotografias?” “Sim, se me deixarem.” Foi como entrar numa jaula de tigres com toda a gentileza. Strömholm manteve contacto com aquelas pessoas para o resto da vida.

A Leica conseguirá manter-se num mundo fotográfico cada vez mais desmaterializado e digital?

Desde que esteja empenhada na fotografia estaremos a salvo. Não é um produto de massas, mas tem a procura suficiente para continuar a manter este sistema vivo.




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