06 fevereiro, 2012

/uma fotografia, um nome\


 


© António Drumond, s/t, 2000

Depois de circular pela vasta experiência do mundo contemporâneo que impressiona Thomas Struth, de acumular a magnificência das estruturas, que se dizem transparentes, das suas instituições, de manifestar, enfim, a congratulação e o consolo que estas catedrais abertas do nosso tempo, esmagando o contexto construído e humano, nos impõem, sabe bem reencontrar o mundo interior de António Drumond, no recém-criado bar e loja da Avepod, em frente ao Douro, no Muro dos Bacalhoeiros.

É bem natural que a Fotografia reflicta estas duas atitudes que coincidem em nós neste malogrado século XXI: o turismo de massas entrosou o gosto inteligente do progresso técnico com o revivalismo esporádico de um pretérito que também nos pertence. A velocidade de circulação, a fusão da imagem com a realidade, estabelecem em nós esta profusão de gavetas de um real que se vai desfrutando em momentos sempre actuais, de que é modelo o recurso à memória informática.
No contexto do bar, onde um veleiro de dois mastros, atracado no rio reanima o tempo passado, as provas de vinho fazem-se entre o chão de pedra e as fotografias de António Drumond, de dimensão razoável, alinhadas ou reencontradas na volta de um canto ou à altura de um primeiro andar; a preto e branco ou a cor, identificáveis ou desafiadoras, ajudam a reconstituir, à moda do nosso tempo, um passado que nunca existiu e um presente invadido por esse passado contaminado por um novo olhar. Pois este fotógrafo semi-amador, (categoria muito comum nesta cidade), que sempre adivinhou as mudanças do olhar e as trabalhou com uma técnica que tende a desaparecer, mantém aqui, nesta mostra quase intimista de fotografias maioritariamente construídas, não uma volta ao mundo do exterior, mas um percurso levemente crispado pelo seu e nosso mundo interior.

Esta imagem de 2000, a preto e branco, que conserva por isso mesmo as mínimas diferenças do detalhe, representa um dos temas mais caros ao seu autor: o momento em que o corpo, no tempo suspenso da imagem, condensa uma decisão, uma atitude. Aqui é a própria resistência ao caminhar, o enfrentar o vento com a força da verticalidade, que desenha na roupa o turbilhão de pequenas forças que a resistência acarreta. E, como é habitual nestas suas imagens de partida, onde não vemos os rostos dos personagens, é para um lugar indefinível, quase onírico, de confrontação ou mistério, que nós, com o personagem caminhamos.

Há um limiar de ausência nesta presença, um limiar que conduz à aventura e ao desafio. Nas suas imagens de retirada do sujeito, (habituamo-nos a confrontar o olhar do fotografado, entendendo-o) é o contexto que cria o enigma, abastecendo-nos de metáforas reconhecíveis, seja a água que corre, mudando a sua imutabilidade, seja o lugar dos mortos ou o da distância, seja mesmo o de uma acção qualquer que nos esconde. E assim o que é retratado é uma situação, mas a história é excessivamente aberta, é excessivamente universalizante.

Estou em crer que a repetição dos seus vultos que nos recusam o olhar, que partem decisivos ou indecisos e que parecem interromper-se porque se sentem olhados, tem precisamente essa intenção de se tornaram universais. Sem rosto, um vulto é um vulto, pode ser qualquer um, não o identificamos, não o classificamos, não o catalogamos nas nossas metáforas do esquecimento. A arte, mesmo a naturalista ou realista, parte da pulsão para a sublimação. O impulso é mais desestabilizador do que a acção, porque nesta se introduzem conceitos e memórias da aprendizagem. No impulso, embora obscuramente, através de signos, é o real que fala, na sua infindável pesquisa do Todo, esse desejo de ser, de ser totalmente, de ser pertença, ainda, de um mundo, alheio às aparências de ser que a cultura vai impondo. Por isso aqui, nesta pessoa que se afastava e interrompeu a luta contra o vento e a intempérie, (e uso uma metáfora comum), vemos apenas alguém, vemos o universal, o Homem, não particularizado pelo rosto. Essa condição da Fotografia, o ser uma evocação do real fragmentado, exige sempre de nós reconstituição do ausente, do fora de campo, ou do que imaginamos ser o fora de campo. Mais do que a pintura, fotografia é sempre reflexão, invoca-nos tempo e lugar, contradição e mediação. E, recorra ou não a um aprendizado estético, à estranheza ou a uma fácil decifração, impõe-nos repetidamente uma viagem, pelo conhecido ou pelo desconhecido. Qualquer imagem fotográfica contém um código que existe em nós; algumas delas, como esta, rodeiam-se de signos onde, como o autor, navegamos de conceito em conceito, sem podermos e sem querermos sair da indeterminação do mistério para o qual toda a metáfora é insuficiente. Universalizamos a representação porque ela nos faz acudir qualquer pulsão, e a pulsão, como sabemos, identifica-se com o seu objecto de desejo, (ama-se no outro a satisfação que nos dá). Não há memória na imagem indeterminada mesmo se construída. É uma imagem de desejo, mas de desejo sem objecto.

Maria do Carmo Serén

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