26 setembro, 2011

Aparições

Gérard por Gérard, França, 2004


Gérard Castello-Lopes vintage
Luís Maio
, P2, Público (23.09.2011)

Jorge Calado e Gérard Castello-Lopes conheceram-se há perto de 40 anos. Foi um desses casos de amizade à primeira vista.

“Conheci o Gérard através de uma meia-irmã. Ela casou com o João Pais, que foi director do São Carlos e com quem eu me dava muito bem. Quando ela fez 40 anos (algures nos anos 70), deu uma festa para os 40 melhores amigos, e eu fui um deles. O Gérard também estava lá e caímos mais ou menos nos braços um do outro. Ele era uma pessoa absolutamente fascinante, o tipo de chegar a uma sala e impressionar toda a gente. Tinha 1,90 metros de altura e foi um grande desportista na juventude. Fez lançamento de peso, voleibol, mergulho, esgrima e ténis. Depois tinha uma voz muito bem timbrada e uma conversa fascinante. Ficámos amigos a partir daí, embora ele vivesse em Paris a maior parte do tempo. Sempre que vinha cá, marcávamos encontro, muitas vezes para almoçar em casa dele.”

Filho do distribuidor de filmes Castello-Lopes, Gérard dedicou-se ao negócio de família, mas também a várias actividades artísticas, nomeadamente à fotografia. Jorge Calado, pelo seu lado, foi professor catedrático de Engenharia Química, carreira da qual já se aposentou, para se dedicar a tempo inteiro à fotografia, ou melhor, a organizar exposições da especialidade. Quando ele e Gérard se encontravam, era naturalmente para falarem de fotografia.

“Nem sempre estávamos de acordo e tivemos algumas discussões muito acesas. Lembro-me, por exemplo, da discussão a propósito do Sebastião Salgado. Ao princípio, o Gérard achava que o Sebastião explorava os pobres e os necessitados, ou aquilo a que ele chamava ‘os consumidos’. Eu, pelo contrário, dizia-lhe que o Salgado prossegue toda uma tradição da história da fotografia, nomeadamente aquela malta do programa fotográfico da Farm Security Administration (Dorothea Lange, Walker Evans, etc.).

Depois ele rendeu-se e o Sebastião Salgado até se tornou num dos seus heróis. De tal modo que, quando o Sebastião recebeu o doutoramento honoris causa pela Universidade de Évora (2001), o Gérard veio de propósito de Paris. Foi a primeira vez que se falaram, apesar de ambos habitarem na capital francesa. Aliás, o Sebastião não conhecia a obra dele.”

Sebastião Salgado nunca tinha ouvido falar de Gérard Castello-Lopes, nem na verdade quase ninguém nos meios da fotografia internacional, onde hoje ainda o português é um ilustre desconhecido.

“Ele começou a fotografar em 1956 e desistiu cerca de dez anos depois. Por duas razões principais: primeiro ninguém em Portugal estava interessado em ver fotografias nessa altura. Não havia galerias, não se expunha. Depois havia uma grande dificuldade para se fotografar pessoas, que desconfiavam e às vezes até ameaçavam com pancada. A conversa que ele teve com o Sebastião Salgado quando o conheceu foi justamente sobre isso. O Gérard quis saber como é que ele conseguia fotografar pessoas que em princípio não querem ser fotografadas. Resposta do Sebastião: ‘Eu vou para aqueles sítios inacessíveis e vivo lá durante seis meses antes de tirar uma fotografia’.”

Descobertas em Paris
Foi preciso esperar pelo início dos anos 80 e pelo entusiasmo de António Sena para ver fotografias de Gérard Castello-Lopes pela primeira vez expostas na Galeria Ether. Para o fotógrafo que já quase se tinha esquecido de fotografar, foi um novo fôlego, o início de um novo ciclo criativo que culminou em 2004, numa grande retrospectiva no CCB, rematada pelo lançamento das suas Reflexões Sobre Fotografia, na Assírio& Alvim. Pouco depois foi-lhe diagnosticado Alzheimer, doença com a qual viria a padecer em Fevereiro deste ano.

“Houve essa grande exposição de 2004 e depois nada. O BES teve então a ideia de fazer a homenagem e convidaram-me em Abril para ser o comissário. Eu aceitei, mas disse que não sabia que tipo de exposição haveria de ser, que tinha de ir a Paris falar com a família. Quando cheguei a Paris, julgo que em Maio passado – isto de montar uma exposição em tão pouco tempo é quase um milagre – é que percebi que havia centenas de provas vintage nas mais variadas escalas. Essa é então a base da exposição e muitas destas provas nunca antes foram vistas.”

São então 153 fotografias (eram 93 no CCB em 2004) –, cerca de meia centena inéditas, que estarão no BES Arte e Finança, em Lisboa, até 12 de Janeiro de 2012, e depois em Abril, no Centre Culturel Calouste Gulbenkian, em Paris. A eventual polémica reside nas tais vintage – as primeiras provas que o próprio artista mandava imprimir – em Lisboa, no célebre senhor Paixão, da Filmarte, e no Camilo, dos Armazéns do Chiado, depois em Paris, no Steinmetz, o mesmo que imprimia para o Cartier- Bresson.

“Foi uma discussão que tivemos durante anos e nunca chegámos a acordo: o Gérard não apreciava as provas vintage. Ele achava que ficar pelas vintage é matar o fotógrafo, cristalizá-lo no passado. Ao passo que eu penso que as fotografias devem ser como as pessoas, ou seja, envelhecerem e isso ver-se.

Sempre pensei, por outro lado, que não deveria mostrar coisas que ele não tivesse aprovado. Acho que não é ético, depois de um autor morrer, ir fazer escolhas nos seus negativos, mesmo que estejam lá preciosidades. Isso tem acontecido, por exemplo, com o legado do André Kertész, do qual têm aparecido inéditos, depois de ele morrer (1894-1985), o que eu acho um abuso. Eu nunca faria isso, mas nas imagens que o Gérard escolheu uma primeira vez, olhando para as provas de contacto e mandando imprimir, há coisas muitíssimo boas. A minha fotografia de eleição, que escolhi para a capa do catálogo, nem os próprios filhos a tinham visto.”

Fotógrafo assumido
Mais vintage ou menos vintage, o certo é que Jorge Calado passou o último meio ano debruçado sobre o legado de um fotógrafo que admirava e de quem era amigo. Foi, necessariamente, um exercício de redescoberta.

“Uma coisa que eu percebi é que é errado separar a obra do Gérard em dois períodos. Nos anos 50, quando ele apontava a máquina, por exemplo, a um grupo de pescadores, era inevitável a conotação com o neo-realismo. Mas nessa altura ele já fazia coisas abstractas e plásticas, na mesma linha depois prosseguida nos anos 80. Outra coisa que descobri é que muitas vezes ele refazia a mesma fotografia, inclusive com 30 anos de distância. Começo a exposição assim precisamente: há uma imagem de roupa estendida com reflexos em poças de água, que é uma das primeiras fotografias que ele tirou no Dafundo, e ao lado está a célebre fotografia da Quinta da Mitra, tirada 30 anos depois, com o recorte da fonte. Olha-se para as duas e estruturalmente são iguais. Ou seja, o olhar dele era sempre o mesmo.”

Jorge Calado já comissariou mais de 25 exposições de fotografia, em Portugal e noutros países – é, provavelmente, a maior autoridade portuguesa no ramo. Por sua vez, Gérard Castello-Lopes é um dos principais nomes da história da fotografia portuguesa, a quem muitos chamam o “nosso” Cartier- Bresson. Mas será que ele foi o maior fotógrafo português de sempre, para o principal comissário da actualidade?

“É a primeira vez que faço uma exposição de um fotógrafo em que o fotógrafo não está vivo. Embora eu conhecesse muito bem o Gérard e inclusive lhe dissesse o que achava desta ou daquela fotografia, o certo é que nunca tinha pensado sobre o que é melhor na fotografia dele e que o torna tão diferente – mesmo da fotografia francesa daquela altura (Doisneau, etc.). A coisa mais importante para mim é o tratamento que ele faz do espaço e aquilo a que eu chamo a modulação, que é a constante repetição da mesma unidade, como as carruagens de um comboio. O Gérard dizia que o maior génio da fotografia portuguesa foi o Joshua Benoliel e eu acho que ele é capaz de ter razão. Também não tenho a mínima dúvida que, tirando o Benoliel, a época de ouro da fotografia em Portugal foram os anos 50 e não apenas o Gérard – é o Sena da Silva, o Carlos Afonso Dias, é o Carlos Calvet, é o irmão dele, Nuno Calvet, e outros. Talvez o Sena da Silva fosse mais talentoso, mas o Gérard foi o único que se assumiu como fotógrafo.”

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