17 dezembro, 2009

/uma fotografia, um nome\


Amazonas, 2000
© Duarte Belo



No Fausto de Goethe, o diabo aparece ao solicitante, numa primeira vez, como um grande cão negro. Só mais tarde toma a configuração simpática de um intelectual interessado.

Nos finais do século XVIII a representação do diabo abandonou as formas terrificantes que herdara da metodologia da Igreja e do vocabulário e bestiário populares. No século XIX já vemos diabos tão belos e elegantes como achamos que os anjos caídos devem ser. Começara a era da ciência triunfante, do método infalível e os seus princípios materialistas substituíam-se ao sagrado; o milagre deixa de ser o padrão do extraordinário. Porque a ciência, afinal, tudo pode explicar.

Os cães negros como Anúbis, são os emissários ou as moradas temporárias do mal, onde acontecem misérias. Perdendo essa força de premonição, porque afinal não desaparecem como os desvios culturais, guardam-se com velhas significações, no inconsciente que Freud inventara a partir do nada e de inquietações suas.

Mas, quer se trate de imagens ou de realidade, a perturbação permanece, se desencadeada; porque não está nas coisas fornecê-las, mas apenas no olhar. E por isso renasce.

E este cão preto de Duarte Belo, que não nos olha porque não tem cabeça, crava as unhas temíveis com determinação ou desespero no chão de tábuas de um momento qualquer do Amazonas. A imagem é, no mínimo, uma alucinação. Ergue-se num primeiro plano próximo demais para ser ilusão, recorta-se na claridade do espaço como um desenho inacabado e, no contexto anónimo e mal reconhecido pela nomeação, pode ser uma das aparições que assustavam os meninos mal comportados da América do Sul.

O cão negro, em si mesmo, não é sinistro; o que o torna inquietante é a fixidez da imagem, que permite notar o esforço das garras e nos dá um cão preto sem cabeça. Pertence mais à esfera do não habitual e assim, pouco inquietante. Mas é-o, apenas, porque preside ao regresso do recalcado.

A arte, como sabemos, dispõe de mais e melhores meios do que o quotidiano para sugerir a perturbação.

Duarte Belo fotografa nas tonalidades dos cinzentos; mas não aqui, os fundos ténues mas bem focados, esbatem-se apenas no confronto com o negro do cão. Utiliza habitualmente câmaras que recolhem a imagem do chão, que sobe até nós, com recorte em quadrado. Desta série do Amazonas tem fotografias que param o tempo e nos deixam um pretérito belo e suspenso, nos fazem recordar os seringais de uma cultura rica e próspera da borracha, o que ficou do esplendor e do novo-riquismo de Manaus.

E assim, esta aparição, regressada de velhos arquétipos quase esquecidos, não surpreende, nem está deslocada. Mas, sabemos hoje porque vivemos no tempo de muitas suspeitas e muitas violências, que a suspeição gera inquietação. E com isso, o que devia permanecer escondido aparece, torna-se mais um tema do que uma alucinação.

Maria do Carmo Serén

Duarte Belo vive em Lisboa.

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