13 novembro, 2009

Sobre Ruins of the Gilded Age

Sem título, da série Ruins of the Gilded Age, 2008, Bakersfield
© Edgar Martins


Depois de ter recebido o Prémio BES Photo, em Abril, Edgar Martins publicou um portfólio sobre a crise no sector imobiliário nos EUA encomendado pela New York Times Magazine. A publicação dessas imagens, na edição impressa e no site do jornal, em Julho, ficou marcada pela polémica, depois de um leitor ter apontado manipulação digital em muitas delas. O Times retirou as imagens do site e, pouco depois, o artista divulgou um texto a explicar a sua abordagem estética ao trabalho. O caso intensificou a velha discussão acerca dos limites da manipulação fotográfica no jornalismo e sobre os desencontros entre um artista conceptual e uma publicação jornalística. O filósofo Peter D. Osborne, professor do London College of Communication, com obra publicada em fotografia e cultura visual, escreveu um ensaio sobre Ruins of The Gilded Age (que pode ser visto na Galeria Graça Brandão, em Lisboa, até 5 de Dezembro).

Eis a versão curta desse texto:

Isto não é uma casa
Algumas reflexões a propósito de Ruins of Gilded Age, de Edgar Martins

1. A palavra grega Oikonomos (economia) deriva parcialmente de Oikos, que significa “casa”. Mesmo no grego contemporâneo, que usa spiti para “casa”, existem termos associados, como oika, katoika, oikiakos, entre outros.

2. As ruínas recordam-nos da materialidade muda do mundo, as coisas que em nada se importam dos nossos projectos fúteis, que em nenhum aspecto reconhecem a ordem que as nossas arquitecturas tentam impor no mundo. Todavia, na sua esmagadora maioria, as ruínas são um dos cenários feitos da história, e a partir deles muitos significados e representações foram edificados. Pense-se na fotografia de ruínas americanas: os edifícios queimados em Atlanta em 1864, os panoramas de Arnold Genthe de São Francisco depois do terramoto na viragem do século XX, os barracões abandonados dos agricultores foreiros nas fotografias do projecto da Farm Secutiry Administration, as mansões desertas e decrépitas das plantações do Mississípi fotografadas por Clarence John Laughlin nos anos 1940, as fotografias de imprensa dos blocos de apartamentos incendiados de Newark e noutros lugares onde os negros norte-americanos se sublevaram na década de 60, cidades-fantasma e motéis destituídos e invadidos pelas ervas daninhas, os projectos de Lewis Baltz sobre desertos de ar provisório, a casa de sonhos de Joel Sternfeld destruída pelo deslizamento de terras, e, claro está, o “Ground Zero” de Nova Iorque. Os desastres norte-americanos tendem a tornar-se icónicos. São necessários para alimentar a epopeia perene que são os Estados Unidos – ou deveríamos antes dizer “foram”? –, uma epopeia de desastres superados, certamente, mas ao mesmo tempo uma epopeia assombrada pelo sentimento da sua própria precariedade, a sua própria brevidade, a sua própria incerteza face ao local a que pertence, se é que pertence. Neste sentido, a loja da Best em Houston projectada por James Wines, construída como se já tivesse sofrido graves tremores de terra, pode ser entendida ora como um desafio face ao fatal destino ora como uma defesa contra ele. A América é uma nação de colonos. A casa, o abrigo, tem uma ressonância muito especial aqui. Qualquer desastre que implique o abrigo, a colónia, torna-se rapidamente uma metáfora de todo um processo histórico.
É este o contexto no qual surge a série de Edgar Martins, Ruins of the Gilded Age, as ruínas da economia caseira.

Sem título, da série Ruins of the Gilded Age, 2008, Phoenix
© Edgar Martins

3. Supor que a elegância, a abstracção, e a cuidada tradução dos valores formais e a manipulação necessária existentes em muito do trabalho de Edgar Martins são de alguma forma qualidades inconvenientes para aplicar aos temas do seu trabalho actual seria um erro. É verdade que a crise social e que a infelicidade humana implícitas em muitas destas imagens são reais o suficiente, e impõem a qualquer fotógrafo um qualquer grau de responsabilidade ética. Porém, Martins nunca foi um fotógrafo humanista nem tampouco um documentalista social. No entanto, é precisamente a ausência da figura humana que, nesta série, acentua uma paisagem profundamente humana, o humano como um princípio que se tivesse ausentado, e que deixa um silêncio visual. É na transmutação de espaços habitados em estruturas quase abstractas que as abstracções mais amplas dos mercados financeiros se revelam, e tornados reais e presentes nas desconstruções que eles mesmos desencadearam. O abandono da figura humana destes espaços é mais do que uma opção estética. Considerando-as nos termos do que Jacques Rancière apelida “a linguagem silenciosa das coisas”(1), estas imagens retratam mais do que uma realidade imediata. Elas representam uma condição que é social e empírica mas também metafísica, e que exige uma estética que jamais se poderá fundamentar somente na observação imediata, e escolhe assim abster-se da melancolia distópica comum em muita da arte de espaços vazios. Citando Rancière mais uma vez: “o real tem de ser ficcionalizado para que possa ser pensado” (2). A palavra ficção tem conotações de um movimento falso empregue para a produção de efeitos reais (uma finta) e, ao mesmo tempo, a de uma coisa feita (as palavras “facto” e “fábrica” partilham a mesma raiz), algo real apesar de manufacturado. Martins tenta, nesta série, fazer evoluir uma “forma de visibilidade”, na qual a grandeza das imagens e das imagens que as acompanham – as de construções num equilíbrio precário, construídas pelo fotógrafo a partir dos detritos deixados no interior de edifícios vazios – fazem com que traga para primeiro plano a “qualidade de factura” do seu trabalho, a sua fictividade, e, nesse sentido, o fabrico das suas intervenções. Mas faz mais do que isso. Como se afirmou acima, estes espaços desabitados ou incompletos começam por aparecer como formas puras, sem qualquer conteúdo, tal como as abstracções económicas que as levaram a este estado. A ficção que é a factura revela a ficção que é o movimento falso, a finta, de Wall Street. Apercebemo-nos deste modo que a economia sobre a qual estas casas e interiores se construíram é tão ilusória quanto os interiores de uma fotografia de Thomas Demand. Ruins of a Gilded Age não produz uma verdade mas antes um processo de uma verdadeira “recomplicação da realidade” (3), baseada na prova da sua própria beleza, na documentação da sua própria estética.

4. Ficámos a saber que aqueles que haviam encomendado este trabalho se sentiram incomodados com a manipulação digital circunscrita que o fotógrafo aplicou sobre algumas das imagens. Bom, é verdade que o trabalho interfere sobre o real, mas um real que já havia sofrido uma interferência substancial. E eu concordaria com o filósofo Peter Osborne quando este diz suspeitar que muito do pânico sobre a perda do real implicada pelas imagens digitais não é mais do que a expressão de uma angústia mais fundamental e deslocada sobre a perda do capitalismo da sua “economia real”.

1. Jacques Rancière, (2006) The Aesthetics of Politics [v. orig. Le Partage du sensible: Esthetique et politique, 2000], London/NY: Continuum; pg. 36.
2. Rancière, op. cit.; pg. 38.
3. Uma frase empregue por Don Delillo para descrever a função do romance.

A versão completa deste ensaio pode ser lida (em inglês) na página de Edgar Martins aqui

Sem título, da série Ruins of the Gilded Age, 2008, Atlanta
© Edgar Martins

9 comentários:

Armando Ribeiro disse...

Esta discussao, novamente!!!

Que houve erro dos dois lados ja se sabe, do lado do New York Times por encomendar o trabalho a um tipo que desde cedo como e descrito nunca foi nem sera um documentalista ou fotojornalista; e do lado do artista por apesar de ter assinado um contracto onde se lia que a manipulacao das imagens deveria ser minima fez o que habitualmente faz nos seus trabalhos alterou-as digitalmente...

Ja se falou imenso sobre isto... E tempo de seguir em frente.

Saudacoes,

Armando

sofia lopes disse...

Julgo que em vez de Edgar Martins se dedicar à fotografia, devia talvez experimentar o ensaio filosófico. O artista está cada vez mais habilidoso com os conceitos. Azar é que no domínio dos argumentos não existe photoshop e a falta de coerência é facilmente detectável (como é o caso). As reflexões sobre o ser, por norma, só surgem para escapar às questões da acção, do dever-ser. Edgar Martins sabe que "meteu o pé na argola", daí a sua actual ocupação ser buscar palcos para justificar ad nauseam a sua conduta. Já chega. A máscara já caiu. Live with it.

Anónimo disse...

...e a miúda que seguia o curso do rio, adormeceu entretanto ao ver flutuar repetidamente a mesma imagem.

Filipe disse...

Este assunto já cansa...

O que está feito, está feito e voltar ao mesmo chega a ser contraproducente para qualquer discussão viável.

Como diria Shakespeare:
"There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy."

António Fragoso disse...

Engraçado ver este senhor, que se disse em tempos "Fotógrafo", mudar a sua atitude em relação ao nosso país. Quando começou a aparecer, Edgar Martins era o artista prodigio que estava a viver o sucesso "over the seas". Agora que as coisas azedaram do outro lado, há meia dúzia de pessoas, onde o próprio se inclui - o que é no mínimo, estranho - a tentar segurar o "bebé" nos braços. E o que fazem para que isso aconteça? Juntam meia dúzia de palavras dificeis e publicam assim do nada, nuns sitios que sabem que muita gente lê.
O Edgar Martins devia era ter vergonha do que fez, e mais vergonha do que está a tentar fazer neste momento. Se o homem se diz assim tão "bom" fotógrafo, que assuma de uma vez por todas que errou e que ande para a frente.
Porque não o fez ainda??? Eheheh... porque a questão ainda agora começou a ser descoberta, e acreditam, meus amigos, que ainda há muita coisa a dizer sobre Edgar Martins... muita coisa que pode fazer com que este senhor ainda vá parar atrás de um balcão da Kodak.

Anónimo disse...

Olá a todos,
Se este assunto ainda é discutido é porque há pessoas interessadas em devolver ao autor a dignidade que ele perdeu (como autor) ao não assumir um erro. Também concordo que o trabalho é, na maior parte das vezes, mais importante do que tudo o resto. Só não concordo que todos os meios são justificáveis para se atingir uma finalidade. Que por várias situações, (e esta do New York Times é só a mais conhecida) parece ser o caso.
Mas também é um facto, que se passa a olhar para um trabalho de uma forma diferente quando se percebe que o autor não está a ser honesto com o seu público. Um exemplo disso é o caso da Leni Riefenshtahl, que até à morte não assumiu a sua proximidade (muito mais do que física) com o regime nazi.
Todas as abordagens são válidas desde que devidamente assumidas. Esta não é uma questão de se o trabalho é válido ou não, interessante ou não, é uma questão de ética. E peço desculpa, mas tenho dificuldades em discutir o trabalho sob esta "aura de incredulidade". E se virmos bem, o trabalho propriamente dito ainda não foi discutido! Nem mesmo pelos textos que o próprio autor coloca no site. Anda sempre tudo à volta da imagem como documento, como meio de expressão, do tratamento digital, etc, etc. É sempre o tentar justificar/ desculpar de uma forma sobre elaborada e sobre conceptualizada...
A discussão que segue esses artigos, é só uma consequência, o contraditório.
Cumprimentos a todos,
João Leal

Miguel disse...

Penso que o título está de acordo com o texto: as ruínas da "Idade Dourada" são filosofias balofas.
Tenho pena que assim tenha sido. Ele por certo que não precisaria de tanto malabarismo para o seu trabalho ser notado, mas parece faltar-lhe ainda maturidade para entender que ser-se humilde e reconhecer-se o erro seria o melhor caminho a seguir. Não usar os trunfos do Poder, como tem sido.
Se a primeira exposição dele foi no Leal Senado, com certeza que não irá estar no balcão de uma loja Kodak. Quando muito, com toda esta conversa ainda arranja um daqueles empregos na Fundação Oriente... é essa a ironia..

Carlos Gomes disse...

Mais Edgar Martins, sempre Edgar Martins, tanto Edgar Martins. Porquê? :(

Aquela que procura Oz disse...

Tanta conversa... Mas porque é que continuam a tentar legitimar o trabalho deste senhor quando na realidade a única coisa que precisa de explicação é a sua falta de honestidade?

O que está em causa não são as fotografias mas a atitude dissimulada do seu autor.

Não me incomoda nada que o Edgar Martins faça uso de técnicas de pós-produção que ajudem a materializar os seus conceitos, até acho pertinente e inteligente que o faça, já que a tecnologia está ao alcance de todos, só não usa quem não quer; o que realmente me incomoda é que tente valorizar o trabalho que desenvolve afirmando o contrário. Perdeu uma excelente oportunidade de estar calado.

Mas será que este senhor é inseguro ao ponto de achar que o seu trabalho perderia valor se se soubesse que era manipulado a posteriori? Haja paciência.

 
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