16 janeiro, 2009

/uma fotografia, um nome\

Aníbal Lemos, in Vozes e silêncios da cidade, 2001
© Aníbal Lemos

Nas suas fotografias de autor Aníbal Lemos privilegia o preto e branco. Esta série é a cor e bem se entende que a mulher de vermelho assim o exigia.

Em qualquer perspectiva ela é o centro, - geométrico, figurativo, indicial, ela de tudo se apropria. A rua de Santa Catarina, no Porto, sobe ao fundo a colina que leva ao Marquês de Pombal; em primeiro plano confrontam-se aspectos renovados de um comércio tradicional de levante e exemplares do monopólio internacional. Mas tudo fica indistinto no olhar, à volta da mulher de vermelho a vida parece suspensa, mesmo a outra mulher, sentada, que a olha, ou o polícia que desconfia sabe Deus de quê. O contexto tornou-se mera decoração, é o contexto da mulher de vermelho.

E tudo porque a mulher, bem ao centro se torna enigmática não nos olhando, deixando, com alguma probabilidade, o seu olhar inquirir numa distância qualquer; porque o seu corpo comum e o “treino” de classe média ganharam o lugar de caput de toda a cena. Porque o vermelho da cor é pregnante para os olhos e para o imaginário ocidental.

É assim que reorganizamos o visual, não num primeiro olhar de síntese interpretativa, mas a partir de sinais que já foram úteis para a nossa sobrevivência e se transmutam em armadilhas do entendimento e do olhar actual.

Organizamos o mundo visível a partir do imaginário. Sabemos a história de representações como esta. Podemos atribuir-lhe interpretações psicológicas ou filosóficas feitas já regras do entendimento, inserindo esses indispensáveis elementos invisíveis na fotografia da mulher de vermelho. Ao designá-la assim aceitamos que a fotografia, como qualquer outra obra produzida para ser vista está destinada a ser completada no seu sentido, pelo destinatário. É, naturalmente, uma estrutura que o autor nos oferece, um conjunto de estímulos onde os biológicos se tramam nos culturais, organizados para nos capturar. Um fotógrafo que a analise, coloca-se na posição da câmara, avalia a distância, investiga os diversos planos e a sua relativa intensidade; o observador comum porta-se como observador, debruça-se na janela e entra no espaço mítico, avançando sobre a cena perspectivada.

Ao isolar a mulher de vermelho na sua transitoriedade de centro absoluto, Aníbal Lemos subalternizou o contexto; este não interage connosco, não tem ponto de fuga, mesmo sabendo a colina que se esbate e indefine nos fundos da imagem. Situa-nos assim na polémica da representação contemporânea que desmistifica, desconstruindo-as, clássicas convenções do olhar imagético. A imagem próxima e horizontal é aqui desnecessária, a mulher de vermelho bloqueia o sentido de fuga e impede a nostalgia do sem-fim.

A fotografia deixou de ser transparente, tornou-se opaca com as subtilezas do problema a explorar pelo observador. Este sabe que olha a fotografia com o prazer de quem a produziu, o seu olhar demora no quase enigma da mulher de vermelho, alternando vagos sentimentos de alienação com interrogações sobre o milagre do ponto de vista.

O olhar deixa e retorna sempre à mulher de vermelho.

Maria do Carmo Serén

Aníbal Lemos é doutorado em Fotografia, professor, fotógrafo, investigador em fotografia. Foi director da Galeria ImagoLucis, no Porto.

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