Em bom rigor são imagens que documentam esculturas que reproduzem imagens preexistentes que representam lugares. Ou seja, são imagens das imagens das imagens. Confuso? É assim que o alemão Thomas Demand gosta de se colocar na fotografia: do lado menos imediato, para fazer perguntas aparentemente inocentes como: O que vemos?; Como é que permitimos que o que vemos tenha um lugar tão importante nas nossas vidas?
Ontem, na Fundação Telefónica, em Madrid, durante a cerimónia de apresentação da exposição Camera, uma das grandes apostas da edição deste ano do PHotoEspaña no campo da fotografia conceptual, Demand foi muito parco em palavras e apontou amiúde para as imagens projectadas e penduradas nas paredes, como quem diz "elas falam por si". E falarão? Não é fácil chegar ao que o move na fotografia. Aliás, a fotografia é mais ou menos um acidente de percurso no seu trabalho de criação artística que passa essencialmente pela escultura. Ele próprio se considera um amateur na arte de fotografar e confessou sem grandes complexos existenciais perante umas três dezenas de jornalistas que, "a nível técnico", até está a precisar de umas aulas.
Quem vê as fotografias do artista alemão nas salas com pouca luz da Fundação Telefónica não sente muito esse "amadorismo" fotográfico, talvez porque o conceito que está na base destes trabalhos apele a um raciocínio complexo que nos transporta para lá do aspecto técnico da fotografia como suporte. Por outro lado, esse conhecimento rudimentar da prática fotográfica também passa despercebido muito por culpa do rigor formal com que tudo é arrumado e construído dentro de cada imagem.
Os bocados de realidade milimetricamente compostos nas fotografias de Thomas Demand não deixam de causar uma estranha sensação de mundo asséptico e impessoal. Parece que falta sempre alguma coisa. Em alguns casos, há faltas que incomodam, tal é a constância com que habitualmente se apresentam à frente dos nossos olhos: as letras e os símbolos. E fomos perguntar-lhe por que é que tinha escolhido não nos dar esse tipo de informação. A resposta surgiu sussurrante e rápida, em duas frases e quatro palavras: "[quero dar] protótipos da realidade, [quero] reduzir a realidade."
Ainda a propósito deste sentido de depuração, um jornalista na sala perguntou se o pintor Piet Mondrian, conhecido pela paleta limitada de cores que usava nos seus quadros, podia considerar-se uma fonte de inspiração. A resposta surgiu mais uma vez vaga: "Não consigo imaginar a arte sem referências".
Quem entra nas salas onde se apresenta Camera, título de um dos vídeos da mostra, tem a sensação de que está no sítio errado ou nas traseiras de alguma coisa, escuridão incluída. As paredes amovíveis que separam os vários núcleos de fotografia e vídeo foram deixadas com grandes suportes em madeira à vista, como se ainda se estivesse a acabar um ou outro pormenor de última hora. É-nos dada a ideia de realidade em construção, um pouco à imagem do que acontece com as "realidades construídas", com as representações de histórias muito particulares que aparecem nas fotografias de Camera.
A simplificação do mundo através da imagem fotográfica segundo Thomas Demand é-nos dada nesta exposição através de três trabalhos. Na série Poll, de 2001, é reconstruído um dos centros de votação na Florida onde foram recontados os votos durante as eleições americanas de 2000 que deram a vitória a George W. Bush. Em Yellowcake (2007), nove fotografias representam a embaixada do Níger, em Roma, o local onde alegadamente os serviços secretos italianos esconderam documentos que provavam a compra de grandes quantidades de urânio enriquecido por parte do regime de Saddam Hussein. Documentos esses que serviram para George W. Bush justificar a invasão do Iraque. Na série Tavern (2006) são recriados vários espaços de um bar da localidade alemã de Burbach onde uma criança de cinco anos foi assassinada por um grupo de pederastas. Para além destas séries, há ainda um vídeo de alta definição, Camera, e dois filmes de 35 milímetros, Recorder (2002) e Tunel (1999).
Na apresentação o comissário fez questão de dizer que estes dois núcleos apresentam uma autonomia muito própria, mas, no essencial, comungam do mesmo objectivo artístico - produzir uma visão alternativa dos acontecimentos. "Thomas Demand coloca-nos perante uma reflexão fundamental sobre o estatuto da imagem como algo que oscila entre a verdade e a ficção, entre o documento e a construção, entre o reconhecimento e a projecção imaginária. É um mundo umas vezes artificial e outras real, uma fantasmagoria estranhamente desprovida de presença humana, ainda que se tratem de espaços reconhecíveis e aparentemente habitados", explica Sérgio Mah, comissário, no catálogo oficial da exposição.
Demand começou por utilizar o suporte fotográfico apenas para registar grandes peças escultóricas feitas de materiais perecíveis como o papel e o cartão. Mas, em 1993, deu conta do potencial fotográfico para despojar a informação visual que recebemos de parte do seu conteúdo anedótico. Para isso tenta representar os objectos da forma mais certeira possível, concentrando a fotografia no que ela tem de essencial e excluindo tudo o que se possa tornar ruído. O resultado final pode ser lido através de três camadas distintas - a da imagem original, a da imagem construída e da imagem representada.
Tudo começa com uma imagem preexistente de lugares ou acontecimentos importantes e polémicos da nossa história política e social. Depois, são feitas maquetas em tamanho real em papel, cartão e outros materiais degradáveis. A maqueta (posteriomente destruída) é depois fotografada de uma maneira que Sérgio Mah classifica como "provocadoramente elegante", onde a atenção se centra "na interpretação da história" e não apenas na sua beleza formal.
Esta aptidão para a construção de objectos vem da escultura, que é a formação-base do artista alemão (Akademie der Bildenden, Munique). Thomas Demand passou depois para a Kunstakademie de Düsseldorf, escola onde os pais da fotografia contemporânea alemã, Bernd e Hilla Becher, deram aulas e de onde saíram ao longo dos anos 80 e 90 alguns dos mais reputados nomes da fotografia contemporânea mundial, como Candida Hofer, Andreas Gursky e Thomas Struth. Apesar desta "escola" da fotografia e de todo o burburinho que tem causado os nomes a ela ligados, Demand não se mostra particularmente entusiasmado com a ideia de ser associado a este grupo de artistas e, numa recente entrevista ao suplemento El Cultural do diário El Mundo, confessa mesmo que a discussão à volta da fotografia o "aborrece". Mas, em contrapartida, já se mostra "muito satisfeito" com o crescente estatuto alcançado como fotógrafo, e não como escultor-fotógrafo. E dá uma das razões pelas quais o seu trabalho deve ser olhado com o mesmo critério utilizado para outro fotógrafo-artista qualquer: "Construo o que fotografo e acho que o processo é tão importante como a sua documentação." No mesmo texto, as fotografias do artista alemão foram classificadas como "frias" e puramente "descritivas". E ele disse que sim, que não são feitas para "comover", mas, ao mesmo tempo, confessou ter "pena" se elas não provocarem essa reacção.
(Público, P2, 07.06.2008)
2 comentários:
"alguns dos mais reputados nomes da fotografia contemporânea mundial, como Candida Hofer, Andreas Gursky e Thomas Struth" Mais reputados para quem? Mais "cotados", talvez?... Também há quem lhes aponte vários defeitos. Gostaria de ver no Arte Photographica um discurso mais crítico - a bem da informação.
ps. "simplicação" é do novo acordo ortográfico? ;)
Obrigado pela correcção. A gralha já lá não canta. Este blogue não tem como principal objectivo fazer crítica de fotografia. Mas o leitor pode usar este espaço dos comentários para a fazer quando quiser.
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