05 março, 2008

/uma fotografia, um nome\

Xangai, 2002
(© António Júlio Duarte)
Há um mistério incómodo nas fotografias de António Júlio Duarte. O que a crítica, desta ou daquela maneira tem sublinhado e que não se reduz à reconhecida tensão de cores e enquadramentos. Gosto desta imagem e de muitas outras, incluindo as da fase a preto e branco. E eu, que gosto mais de gatos, até parece que entendo a interdita miséria e o destroçado abandono dos seus cães vadios.

Esta imagem de uma Xangai, que podia ser ali à esquina, é relativamente recente e já perdeu decisivamente a agudeza da cor, mas manteve essa exploração miudinha dos gestos, que é uma das glórias deste fotógrafo. António Júlio Duarte é um dos grandes fotógrafos nacionais, um daqueles de que nos apropriamos para vitoriar o país. Mas quem gosta de classificações a partir de correntes, tem sérias dificuldades em situá-lo, o que, na realidade, é de bem menor importância no seu trabalho.

Margarida Medeiros parece ter intuído o nó da diferença, usa mesmo o conceito freudiano de heimlich, na sua caracterização mais labiríntica, quando, pela forma positiva de entendimento domesticado, (porque unheimelich, o seu contrário, significa mesmo estranheza), heimlich, paradoxalmente, associa familiaridade a estranheza e ocultação. Como se, naquelas coisas que julgamos reconhecer, um elemento repentinamente perturbador nos desencaminhe. O que faz enigmáticas as suas imagens.

Eu acho mesmo que António Júlio Duarte, que traz sempre a sua câmara a tiracolo, presumindo-se que pesquisa a poesia ou o desvario do acontecer, não é, verdadeiramente, um fotógrafo flâneur. Vagabundeia em trilhos interiores que alucinam a imagem fotográfica, como se procurasse um palco para os seus fantasmas depressivos. E aí, nesse cenário, se conjugam os segredos de um real visível e de um “real” psicanalítico, que é a febre de viver na falta, sabe-se lá de quê. A contingência, como sabemos, fabrica as polaridades da vida, perversas ou sadias, insuspeitadas ou deliberadamente reprimidas, os anjos do bem e do mal em contínua oposição, um olhar que alberga transparência e inquietação. E são essas pequenas percepções que perpassam nas suas imagens, que nos falam de um olhar inquieto, dentro e fora, dum descobrir e descobrir-se que, naturalmente, segue de argumento em argumento.

Talvez por isso, os personagens de António Júlio mostram-se frequentemente em retirada, de costas voltadas; mas não há deficit de avaliação porque a clareza dos gestos do corpo supre outra qualquer informação: ombros que se esgotam de cansaço, desajustes de troncos que ferem de desânimo ou se endireitam com entusiasmo, o perfil da sedução num volteio de roupa, o refechamento duns pés encolhidos. Nesta imagem, o corpo todo que podemos ver fala da expectativa da jovem ao telefone: os ombros direitos – excessivamente tensos no brilho neo-clássico da camisa,- a ligeiríssima inclinação da atenção na nuca perfeita, o comedido afastamento do dispositivo mecânico para garantir a unidade do corpo e do sentir, enfim, o decidido apoio da mão direita no suporte do varão. À sua volta sabemos que a vida circula, alheia e impensada, em segundo plano. O cenário é a parede verde da cabine que recorta o desenho onde o gesto se inscreve. A suspensão do olhar faz-se no centro. O real capta-se por fascinação, é certo, mas pode tornar-se possessão. Do fotógrafo e nossa. O sentimento da arte é afim do real, insinua-se nele o sentido oculto, mas não fica percepção, só fulguração e arrepio. Por isso mesmo é incómodo, não termina no studium, não fala, não se anuncia. É só um clarão, uma passagem. A falta, que está associada ao objecto parcial, a um objecto de substituição como a imagem fotográfica, apela ao desejo.

É bom saber que se trata, afinal, de um registo de experiência. Onde se passa qualquer coisa para lá do que se vê e nos perturba.

É só assim que se passa, guardamos no corpo, num afloramento de toque, a rapariga da blusa de cetim.

Maria do Carmo Serén

António Júlio Duarte (Lisboa, 1965)
Dezenas de publicações e trabalhos bibliográficos;
Presente em colecções nacionais/internacionais.
Vive e trabalha em Lisboa

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