José Barros (© Georges Pacheco)
...Georges Pacheco
O espaço cultural Silo, no Porto, abriu ontem as portas a dois projectos originais: O Olhar dos Cegos e A Memória das Lágrimas.
No primeiro, Georges Pacheco, fotógrafo nascido em França filho de pais portugueses, tenta perceber como é que os cegos abordam a questão do auto-retrato, no segundo reflecte sobre aquilo a que chama “os mecanismos do choro”. Pacheco tem uma formação académica em psicologia e arte. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian em 1991 e desde 1992 que expõe regularmente em França e em Portugal. Em 2002, mostrou o trabalho Santo António em Alfama no Arquivo Fotográfico Municipal em Lisboa. Esta conversa por telefone aconteceu durante um intervalo na montagem das exposições no Porto.
Por que é que fotografas?
Essa é a grande questão. Tento resolver pela fotografia o que não consigo resolver por outro tipo de linguagem. É uma maneira de me confrontar com a realidade, com o outro, com o exterior. Gosto de me confrontar com as pessoas, com o humano, para tentar chegar à essência, àquilo que é primordial. É também uma forma de me conhecer.
Achas que quem se auto-retrata pela fotografia está sempre a mostrar outra pessoa?
O auto-retrato é um jogo complexo. No caso do trabalho A Memória das Lágrimas, eu não ficava na sala durante a execução final do trabalho, mas o meu olhar sim.
Preferes que o fotógrafo não tenha muito protagonismo. Porquê esta opção pelo seu “desaparecimento”?
É importante para mim. É uma forma de conviver com a fotografia. É uma hierarquia de poder entre o que se chama o modelo, o sujeito fotográfico, e o fotógrafo. Quando o fotógrafo parte para a fotografia já vai com uma série de desejos, vai com uma série de preconceitos sobre o que vai fazer. Quer fazer uma fotografia “bonita”. Tento fugir a isso, libertar-me para chegar a uma certa verdade. Pode ser a verdade de um modelo que fica sozinho perante uma câmara, confrontado consigo mesmo. Quando falo de um regresso a si, quero que as pessoas sejam mesmo autênticas, não finjam, não mintam naquele momento. Quero que se entreguem de corpo e alma a uma coisa muito íntima que é realizar um auto-retrato numa intimidade muito grande. Quer o trabalho dos cegos ou o das lágrimas, a pessoa, está num momento de grande intimidade.
Esta situação em concreto de trabalhar com quem não vê, com quem não se vê, coloca o fotógrafo numa situação de vantagem. Foi essa vantagem que quiseste anular quando pediste a cada um dos retratados para carregarem no botão?
Não é só isso. Eu quis sobretudo pôr os cegos perante uma experiência nova. Um auto-retrato é uma coisa que tem muito sentido para eles. Dá-lhes poder. É, por outro lado, uma relação activa, e não passiva do tipo “vem aqui hoje um fotógrafo tirar-me o retrato”. É o cego que quer fazer a fotografia, representar-se à sua maneira sabendo que vai ser exposto e visto por outras pessoas. É uma tripla acção que tenta afastar a imagem que temos do ceguinho pobre.
O “eu” de que falas nos retratos só é captável se for o próprio a fazê-lo?
Não sei se é mais difícil. O difícil neste trabalho é que entro na vida de cada pessoa, na sua história pessoal de maneira muito rápida. Antes de fazer a fotografia há uma conversa para tentar perceber perante quem estou. Mesmo com estas informações, não é possível conhecer quase nada da pessoa e por isso a ideia de resultado perde um pouco o sentido. As pessoas estão cheias de segredos, nunca mostramos tudo o que somos realmente. No auto-retrato há um pouco mais de liberdade, porque a ideia é chegar ao mais autêntico. Tirar um retrato a uma pessoa é uma coisa muito diferente. Eu quero é que as pessoas se confrontem consigo e com as suas emoções, ou com uma certa ideia de representação.
Acreditas que é possível obter pela imagem fotográfica um objecto que seja um espelho fiel daquilo que verdadeiramente somos em determinado momento?
Não. Isso é impossível. A fotografia pode atingir muitas coisas, mas nunca a realidade.
São pequenas mentiras?
Sim são pequenas mentiras. Mas tento sempre encontrar essa ideia de “instante decisivo”. Neste projecto dou a cada um a possibilidade de encontrar o seu “instante decisivo”.
Tentas dar o mínimo de indicações...
Sim. No caso do trabalho das lágrimas houve pessoas que ficaram quase uma hora sozinhas dentro da sala. A primeira relação da fotografia é a relação com o tempo. O tempo de que falo no meu trabalho é um tempo interior. É um tempo psicológico que as pessoas vão tentar parar naquele momento.
Dizes que os cegos com quem trabalhaste demonstraram mais liberdade à frente da câmara do que quem vê. Que diferenças foram essas?
Ao princípio tinha pensado fazer estes auto-retratos apenas com um enquadramento. Mostrava a mão das pessoas a carregar no disparador. No fundo era para dizer que estas imagens eram mesmo auto-retratos. Pensava que houvesse variações, mas todos colocavam a mão no mesmo sítio, em cima da coxa. Tentei então aproximar-me mais da pessoa. Há um momento em que o foco está feito e não é possível haver grandes movimentos. Como eles tem um bom controlo do corpo, as fotografias ficaram bem focadas. Escolhi o enquadramento conforme o que sentia. Por vezes concentrava-me apenas no rosto.
Mas aí não havia o risco de se sentirem intimidados?
Não creio. Houve uma mulher que no fim de ter feito o auto-retrato, pediu-me que lhe desse o resultado da sua análise psicológica. Perguntou-me “então qual é o resultado?”. Como se o auto-retrato tivesse feito um teste psicológico. Pensamos que os cegos estão fora da representação mas não é verdade. Uma mulher passou a mão pelos cabelos, arranjou-os para a fotografia. Como alguém que vê, é igual. Isso quer dizer que para os cegos também interessa a imagem que vai ser transmitida de si na fotografia. Outra pessoa, não quis ser fotografada no próprio dia. Foi fotografado um dia depois. Apresentou-se com uma roupa diferente com um fato para justificar um certo estatuto social, porque desempenha um cargo diferente na associação. Chegou com uns óculos de sol. Disse-lhe que não faria sentido fazer a imagem assim e ele tirou os óculos.
E em relação à atitude dos cegos de nascença com a dos que perderam a visão ao longo da vida?
A grande diferença está nas “Imagens-Desejo”. No início tinha pensado em pedir uma descrição o mais pormenorizada possível da fotografia que eles gostariam de tirar se tivessem visão. Dava algumas coordenadas como a cor, o enquadramento, o local, o motivo, etc. Mas não funcionou. Tive de fazer uma pergunta mais aberta do tipo “qual a fotografia que gostaria de tirar”. Muitos não dizem se é a preto e branco ou a cores. Mas não fiz nenhum tipo de categorização entre uns e outros.
Essas “imagens-desejo” surpreenderam-te?
Não, não me surpreenderam. Sabia que ia ter imagens cliché. O pôr do sol foi uma delas. E que imagem pode simbolizar melhor a ausência de luz que o pôr-do-sol? O pôr do sol é a perda da luz. O que mais me surpreendeu foi a incapacidade de descrição de uma imagem.
Que objectivos persegues com estes trabalhos?
Uma das coisas importantes é a reacção das pessoas com estas imagens. Gostava que sentissem um abanão. Acho que a fotografia contemporânea meteu de lado a pessoa. Gostava que quem vê também se apercebesse dos mecanismos interiores de cada pessoa. Que aprenda alguma coisa sobre a condição humana. Quero que tenham emoções. É muito fácil encontrar emoções na ópera, na música, mas na fotografia não. Uma das perguntas com que parti para o trabalho dos cegos foi: de que forma o olhar dos cegos toca quem vê as imagens?
No caso da Memória das Lágrimas, a ideia era também chegar à emoção através de um momento de profunda tristeza...
O trabalho não era só sobre tristeza. As pessoas podiam chorar de alegria.
Qual foi a reacção destes auto-retratados depois do disparo?
Houve pessoas que me agradeceram. Porque tinha sido um momento muito forte para elas. É um exercício que pode ter um lado de catártico. Houve pessoas com quem estive a falar duas ou três horas sobre a sua fotografia.
Não receias que estes trabalhos sejam entendidos como uma exploração do sentimento das pessoas?
Não, porque não faço fotografias para ter uma emoção a qualquer preço. Não sabia se os auto-retratos resultariam. Tento perceber apenas quais são os mecanismos de decisão das pessoas e a imagem que cada um quer dar de si.
Mas, em França, onde O Olhar dos Cegos foi exposto, houve alguma polémica.
Não chegou a ser polémica. O presidente da câmara de Le Mans mandou tirar um cartaz que estava pendurado na sede da autarquia. Mas também tive muitas reacções positivas. Estas imagens não são só visuais. Somos obrigados a entrar nelas de outras formas.
Consideras-te o fotógrafo destes auto-retratos?
Tento sempre ficar numa situação de igualdade com cada fotografado. Tento fazer uma partilha de poder. Cada fotografia é de Georges Pacheco e do modelo que faz o auto-retrato. O dinheiro que resulta da venda de uma fotografia é dividido.
Que projectos te ocupam agora?
Estou a trabalhar na ideia de fazer auto-retratos durante o orgasmo, um momento em que as pessoas se sentem um todo. Interessa-me também as situações em que as pessoas estão no fim da vida. Nessa altura, normalmente, não somos tão tentados a fingir. Somos autênticos. Estamos tão rodeados de fingimento que me interessa voltar à verdade.
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Georges Pacheco
O Olhar dos Cegos e A Memória das Lágrimas
Silo, Espaço Cultural, Norte Shopping, Porto
Piso 0, Rua 2 (entre as lojas 0.240 e 0.246)
Todos os dias das 13h00 às 24h00
Até 22 de Maio
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