António Pedro Ferreira, emigrantes portugueses em França © António Pedro Ferreira |
Um fotógrafo humanista pouco dado ao contacto humano
(ípsilon, Público, 14.05.2014, com Sérgio C. Andrade)
O tempo que baliza o nascimento, o auge e o declínio da fotografia dita humanista corresponde, grosso modo, ao tempo em que Henri Cartier-Bresson se manteve publicamente activo na fotografia, entre 1930 e 1970. A sua prática fotográfica é citada de forma recorrente entre os que se dedicaram a dar expressão a um movimento que privilegiava a pessoa, a sua dignidade e a sua relação com o meio. Mas há também quem duvide deste alinhamento de Cartier-Bresson. Apesar de se poder considerar que a abordagem humanista é intrínseca à fotografia e um dos seus objectos permanentes, é possível delimitá-la entre o momento em que se sentiu necessidade de regressar ao real e o momento em que a fotografia-documento deu lugar à fotografia-expressão (André Rouillé).
No arranque dos anos 30, depois de uma década em que se manifestou todo o tipo de vanguardas (surrealistas, abstractas, construtivistas…), um número crescente de fotógrafos assume a vontade de voltar a olhar para o que se passa nas ruas, procurando a “precisão fotográfica” para através dela captar o espírito do tempo.
Abalada pela Grande Depressão que estala nos EUA em 1929, a classe operária sofre e os fotógrafos usam as suas ferramentas para dar visibilidade a esse sofrimento. Para afirmar esse desígnio, há um meio que ganha cada vez mais importância: a imprensa fotográfica (entre muitas outras, a Vu, a Life e a Paris-Match, fundada em 1949, que tornou célebre o lema “le poids des mots, le choc des photos”, ou seja “o peso das palavras, o choque das imagens”). E também meios técnicos de fácil manuseamento (Leica, Rolleiflex), que fixam o quotidiano de uma maneira inovadora e vívida.
A primeira década de produção de Cartier-Bresson enquadra-se nesta corrente que procura um “realismo poético”, nomeadamente com imagens que mostram a descoberta do tempo livre, as várias faces da pobreza ou o quotidiano das cidades. Apesar desta escolha de temas sociais, o fotógrafo Paulo Nozolino, que conheceu Cartier-Bresson em Paris, não identifica na sua obra nenhum traço da fotografia humanista. “Era um esteta, um formal e um dogmático. Encontro uma prática humanista em W. Eugene Smith (1918-1978) ou em Robert Capa (1913-1954), mas em Henri Cartier-Bresson não.” Para Nozolino, Cartier-Bresson “não era um fotógrafo da emoção”, e o facto de fotografar com uma lente de 50 mm colocava-o “longe do sujeito, sem contacto com ele”. “Há algumas fotografias dos primeiros tempos, sobretudo as que fez em Espanha, que ainda podem ter algum calor, mas o resto não.”
O fotojornalista do semanário Expresso António Pedro Ferreira, que estagiou entre 1982 e 1984 na Magnum, onde se cruzou com o fotógrafo francês, reconhece em Cartier-Bresson um pendor humanista, mas sublinha “a frieza, às vezes desconcertante”, de muitas das suas imagens mais conhecidas. “Ele é um virtuoso. Quem olha para as suas fotografias dirá que tem o poder da máquina do tempo, que consegue fazê-lo parar no auge de um gesto escolhendo com uma precisão matemática a abertura certa, a composição perfeita, tudo.” Apesar desta destreza, António Pedro Ferreira lembra um lado de Cartier-Bresson pouco dado a contactos pessoais: “Na Magnum, só me davam orientações se eu as pedisse. Como o meu trabalho era sobre emigrantes, fui ver todas as fotografias que tinham sobre emigração. Foi numa dessas visitas que me cruzei com ele. Era temido por toda a gente. Tinha mau génio. As pessoas tinham-lhe medo, evitavam-no. Tinha um espírito crítico implacável. Houve alguém que um dia lhe foi mostrar um portfólio e ele decidiu vê-lo de pernas para o ar.” O fotojornalista do Expresso, o único português a estagiar na mítica cooperativa, fala ainda de um homem “muito nervoso, sempre a gesticular, sempre aos pulinhos”. “Era muito enérgico, mas era um estilo de energia que parecia não dominar.”
Paulo Nozolino traça um retrato semelhante: “A composição era a única coisa que lhe interessava. Era um fotógrafo do rigor. Não era um homem muito preocupado com as pessoas. Era um burguês. Viajou pelo mundo e teve acesso a coisas que mais ninguém teve. Não me parece que tivesse a mínima empatia pelo proletário russo ou pelo operário chinês. Era pedante e frio.” O fotógrafo português afirma ainda que quando Cartier-Bresson deixou de fazer reportagem, no início dos anos 70, “sabia perfeitamente que os seus bons velhos tempos já tinham acabado”. E a partir daí “passou a ser um papa, mais do que outra coisa qualquer”. “É o papa de muita gente, mas meu não é”, insiste.
Já o francês Georges Dussaud, fotógrafo da extinta agência Rapho (fundada em 1933 e viveiro de muitos fotógrafos humanistas, como Robert Doisneau, Édouard Boubat, Bill Brandt, André Kertész, Janine Niépce, Willy Ronis e Sabine Weiss), ressalva que Cartier-Bresson “comprometeu completamente a sua vida para testemunhar o estado do mundo, a vida quotidiana das pessoas mais comuns”. Para Dussaud, que fotografou Portugal ao longo das últimas três décadas, “é preciso regressar à fotografia humanista, porque ela é um testemunho importante do mundo, de um determinado tempo histórico, e dificilmente será substituível”.
Na Magnum, António Pedro Ferreira, que durante dois anos se concentrou apenas na emigração portuguesa em França, lembra que os conselhos dos fotógrafos mais experientes iam sempre no mesmo sentido — estar com as pessoas. “James Fox disse-me para escolher uma família e seguir cada membro o mais tempo possível. Dizia que era preciso sair de manhã com cada um deles e voltar à noite…” Aqui, o resultado não foi “uma visão optimista do homem”, um dos mandamentos do humanismo do pós-guerra que teve a sua expressão máxima na exposição The Family of Man, organizada por Edward Steichen e inaugurada em 1955, em Nova Iorque, mostra em que Cartier-Bresson participou.
O que este longo ensaio do fotojornalista português mostrou foi, afinal, uma comunidade fechada sobre si e triste, uma visão que não escondeu “a especificidade histórica e social das representações dos indivíduos no mundo” — que foi o que Roland Barthes pediu em Mythologies (1957), quando criticou a linearidade encenada do humanismo de The Family of Man.
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