15 abril, 2013

/uma fotografia, um nome\

Elsa Penalva, sem título
© Elsa Penalva


Os nossos desejos e as nossas mais rebuscadas sublimações mergulham nesse trânsito que no presente, sempre no presente da nossa condição humana que inventou passado e futuro, esclarecem o nosso olhar sobre o mundo: um olhar armadilhado com crenças, mitos e fantasmas da nossa aprendizagem. Há sempre um mundo para um, uma recriação em todo o momento consciente.

A fotografia constrói-se a partir dessas mistificações, que são o que temos para sobreviver: as formas oferecidas pela luz, enquadradas pela distância entre si e pelo quadrilátero da câmara, as cores do arco-íris, desmaiando ou fortalecendo em tonalidades electrónicas, a presença-ausência de pessoas e coisas, sombras de um espaço e um tempo que não se repete.

Este nosso mundo onde impera a imagem repele a ideia da foto como duplo do real, sabe-a um objecto alheio muito próximo da convenção do espelho. O espelho é uma obsessão persistente, já que somos aqueles que desconhecem o modo como somos vistos: o modo como o outro nos vê. A imagem fotográfica, contemporânea da difusão dos espelhos nos guarda-vestidos, trouxe-nos a simulação de alguma representação de si, esse todo fixado num instante fugidio tal como o espelho nos pode revelar.

Talvez por isso mesmo, porque responde a uma mitologia feita de muitas imagens perseguindo a realidade, a realidade fotográfica além de mito tornou-se banal. Porque cada um de nós é feito de milhares de imagens, banais ou memoráveis, em papel, no vídeo ou no ecrã; e todas essas se envolvem e enredam nas muitas figurações que a vida nos foi dispondo no caminho.

E assim, uma cenarização fotográfica como esta de Elsa Penalva, que conhecemos como historiadora da nossa presença colonial em continentes de mito, ao mesmo tempo que nos coloca no centro de uma desmistificação da imagem como duplo do real, revela ainda, pela utilização de bonecas de civilizações e tempos diversos, (a boneca masculina oriental e o exemplar feminino da industrialização), um confronto de culturas que são seu objecto de estudo e investigação.

Há naturalmente uma história que se conta e que, para nós, fica no plano das conjecturas. E, quando se narra uma história, ficamos no espaço da fronteira entre a realidade e a ficção, tão atentos como os personagens que aqui a encenam com bastante intenção: há um prolongamento de olhares e um domínio imperativo na inquietante figura masculina sublinhada pela contradição do anúncio que é a pomba branca.

Robert Frank negava-nos a capacidade de compreender o momento fotografado; retirava à fotografia directa a sua representação, entregue à criatividade e experiência de cada um. A imagem fotográfica fica apenas como fenómeno: produção e recepção, o olhar do fotógrafo e o olhar do que a observa. Com esta encenação acontece o mesmo. Há sinais emitidos que solicitam a nossa experiência, mas com a nossa observação classificadora juntam-se elementos que relevam de uma memória segunda que se enraíza em gestos e olhares, em atitudes e sombras. Eu sinto que o personagem masculino, suave e quase perfeito, revela um predador. E lamento a figurinha ingénua que será a sua presa.

A nossa própria história é seguirmos contando a nós mesmos, incansavelmente, as mesmas histórias. E aí é indiferente que se trate de um olhar, de um livro, de um filme ou de uma imagem fotográfica.

Maria do Carmo Serén


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