Iludir
Mal acabei de ler o texto “Os mistérios de Chris Marker em Portugal” (PÚBLICO, 6.8.12), lancei-me logo na Amazon à procura de Portugal (1957), o livrinho número 16 da colecção Petite Planète que o notável realizador, fotógrafo e escritor orientou para a Seuil. Nesse ensaio, publicado na sequência da morte de Marker, em Julho, Susana S. Martins fez-nos um brilhante resumo daquilo que foi a ligação do artista a Portugal através de uma obra que está a léguas da carneirada dos livros de fotografia e viagens de então. Portugal chegou-me de França rápido, bem embrulhado e ainda com uma sobrecapa daquelas de papel transparente para precaver riscadelas na capa imaculada, como imaculada parece a figura que mora nela.
Marker, homem dos sete ofícios, lançou-se na empreitada de editar livros sobre lugares porque os “guias” da época lhe pareciam estafados, seguidistas e desorientadores. Para ele, o mundo do pós-guerra tinha ficado mais acessível do que nunca, mas a experiência da viagem era “ilusória”: “Vemos o mundo escapar-nos, ao mesmo tempo que nos tornamos mais conscientes das nossas ligações com ele”. Em ruptura com o que se fazia, propôs uma série que fosse “uma conversa com pessoas inteligentes e cultas”, pessoas que “estivessem bem-informadas sobre os países em questão”. No volume sobre Portugal, Franz Villier, autor do texto, põe de lado os rodriguinhos e esmera-se por não deixar nenhuma alfinetada ao acaso com críticas ao ultramontanismo, ao colonialismo e ao ditador celibatário. Isto, claro, sem nunca esquecer os pormenores (descrição dos hotéis: “Três categorias, como as prisões”).
O extraordinário arranjo gráfico de Portugal é de Marker assim como boa parte das fotografias que desafiaram o cânone do Estado Novo (os Jerónimos surgem com um matagal à frente, a Torre de Belém com um pardieiro lamacento). Está bom de ver que a censura proibiu o livro. E nem a encantadora mulher envolta em trajes típicos na capa desviou o controlo pidesco do conteúdo. O que prova que, neste caso, eles leram e viram alguma coisa do que lá vinha estampado, não se ficaram pelo retrato de Jean Dieuzaide, que assinava com o pseudónimo de Yan, assíduo de salões em Portugal e colaborador do SNI (António Sena).
As mulheres eram regra nas capas da série. Ao escolhê-las, Marker aposta na sua força simbólica e sedutora. Mas no caso de Portugal, esta candura até soa um bocadinho a provocação (também pelo autor escolhido). Enquanto dá uma imagem plácida e de antanho do país na capa, no miolo a pena e as objectivas são gumes afiadíssimos para tudo e todos. É caso para dizer que se se ficasse pela capa, a censura seria romanticamente ofuscada. Como eu fui quando encontrei este In Portugal (Prestel, 1961), em alemão, que traz um olhar de que não se consegue escapar.
1 comentário:
Eu gosto muito do trabalho do fotografo quando faz livros da viagens e logra capturar a cultura das pessoas desses lugares.
Nas imagens posso ver como eram as mulheres de Portugal nos anos 50.
Enviar um comentário