José Luís Neto, Caderno de Imagens, com curadoria de João Francisco Figueira e Vítor Silva |
Realismo e visibilidade
Nuno Crespo
(ípsilon, 10.08.2012)
Esta é uma
edição singular.
Não só porque a
sua arquitectura
é pouco comum
— composta por fragmentos de
textos justapostos às reproduções
das imagens —, como porque ao
habitual estatuto e à habitual
pompa das edições dos livros de
fotografia prefere os agrafos, uma
capa em papel pardo e uma
impressão excelente num papel
convencional. O resultado é um
“caderno de imagens” que além
de reproduzir um conjunto de
trabalhos de José Luis Neto (n.
Satão, 1966) também reproduz
uma sucessão de fragmentos de
textos de autores como Deleuze,
Blanchot, Proust, entre outros, e
estabelece uma posição acerca da
fotografia, da sua relação com o
mundo, com os seus objectos e a
sua actividade. As imagens de José
Luis Neto invocam questões sobre
o dispositivo, a percepção e a
tensão figuração/abstracção.
A pertinência desta edição é
incontornável, porque traz o corpo
de trabalho de um artista para o
centro do debate sobre a imagem,
as suas teorias e políticas. Um
corpo de trabalho que tem a
característica de ser singular não
só no modo como se constrói e vai
desenhando um programa
artístico, mas também no modo
constitui uma firme posição no
contexto da fotografia
contemporânea. Desde o início da
sua carreira que José Luís Neto se
dedica a fotografar folhas brancas,
a fazer imagens de fotografias
antigas, de negativos, a manipular
os mecanismos (motores e
películas) e a fazer uma espécie de
meta-fotografia. Não porque o seu
trabalho fique além da fotografia,
mas porque recusa as suas
convenções e os protocolos mais
correntes e, sobretudo, porque se
afasta e perturba a relação
essencial da fotografia com um
objecto. Ou seja, aqui a fotografia é
o seu próprio objecto: trata-se de
uma espécie de gesto reflexivo ou,
se se preferir, de uma tentativa de
auto-consciência. Um virar-se da
fotografia sobre si própria que tem
como consequência mais imediata
fazer da maioria da obra de José
Luís Neto — e as séries
reproduzidas neste “caderno” são
disso um bom exemplo — uma
investigação acerca das condições
de possibilidade da fotografia. A
este propósito, os “curadores” do
livro (João Francisco Figueira e
Vítor Silva, responsáveis pela
escolha dos fragmentos que
acompanham e dialogam com as
imagens, citam um passo notável
do Thomas l’obscur de Blanchot: “O
seu olho, inútil para ver, ganhava
proporções extraordinárias,
desenvolvendo-se de uma maneira
desmesurada e, estendendo-se
sobre o horizonte, deixava a noite
penetrar no seu centro para criar
uma íris. Através deste vazio, era
então o olhar e o objecto do olhar
que se misturavam. Não apenas
este olho, que nada via, aprendia a
causa da sua visão. Ele via como
um objecto, o que fazia com que
nada visse. Nele entrava o seu
próprio olhar, sob a forma de uma
imagem, no momento trágico em
que este olhar era considerado
como a morte de toda a imagem.”
Ver através de um vazio,
aprender a causa da visão e entrar
no próprio olhar surgem como
acções sinónimas, mas este vazio
não é um vazio total que tudo
absorve e transforma em nada; é o
vazio referencial, ou seja, para este
movimento do olhar cessam as
distinções dentro/fora, interior/
exterior e em seu lugar surge o
olho simultaneamente como
sujeito e objecto, imagem e
dispositivo. Por isso, a este vazio
não corresponde a inexistência de
objecto perceptivo, antes uma
suspensão da relação linear com o
exterior, como se o olho (que aqui
serve como metáfora da fotografia)
visse aliviada a exigência de
realismo e se encontrasse
destituído da ambição de
reprodução do real: “Em arte, e
tanto em pintura como em música,
não se trata de reproduzir ou de
inventar formas, mas de captar
forças. É exactamente por isto que
nenhuma arte é figurativa. A
célebre fórmula de Klee, ‘não
restituir o visível, mas tornar
visível’, não significa se não isto
mesmo.”
Esta citação de Deleuze (Francis
Bacon. A lógica da sensação)
sublinha a obra de arte como uma
força que não representa, nem
substitui (ou seja, não é uma força
de representação), mas que é uma
instância de aparição: uma força
que cria a visibilidade. Ou seja, a
visibilidade proporcionada pela
obra de arte não reenvia para
outro tempo, para outros objectos,
para outras paisagens. A obra de
arte não é um meio através do qual
se vê, como uma janela com um
vidro bem polido e transparente: é
a própria visão.
Este mini-itinerário conceptual e
estético pelo “caderno” de José
Luís Neto não é cego às imagens
produzidas pelo artista, mas
apresenta o carácter mais
essencial e determinante do seu
trabalho. O qual é claro na recusa
da figuração, não como opção,
mas porque para José Luís Neto
nenhuma arte é figurativa: em
muitos momentos, as suas imagens
parecem pinturas impressionistas
em que o branco é um elemento
central e estruturante, ponto
central a partir do qual as manchas
— que são as figuras e os objectos
dos seu trabalho — se expandem e
conquistam o espaço. E esta
aparente abstracção não constitui
um desvio da fotografia da sua
natureza, do seu objecto, da sua
ambição: porque “verdadeiro
realismo significa: não representar
objectos mas sim criá-los.
Reproduzindo-os, apenas os
sublinhamos esteticamente e
preenchemos um mundo
incompleto com interpretações e
ficções.” (Carl Einstein, George
Bracque).
Este é o contexto que este
“caderno” cria para que possamos
ver/perceber/entender as duas
séries de José Luís Neto: High
Speed Press Plate (2006) e July 1984
(2012). As séries não se prolongam,
mas contaminam-se pelos
problemas colocados e pela
estrutura interna que constroem.
Se na série mais antiga há uma
total ausência de formas e é o
reino de manchas informes que dá
origem a paisagens mentais e
profundas, na série mais recente
surgem pessoas, interiores de
casas, situações concretas do
quotidiano. Mas esta aparição não
significa assumir como tema das
imagens esses objectos e o seu
registo ou arquivo, até porque são
mostrados em situações de
dissolução, corrupção e
desvanecimento, em momentos
entre a visibilidade e a
invisibilidade, a luz e a
obscuridade.
Uma edição importante não só
porque disponibiliza trabalhos de
um autor importante da fotografia
portuguesa contemporânea (desde
2005 não era dedicada nenhuma
edição a José Luís Neto), mas
também porque coloca o seu
trabalho no centro do importante
debate em curso e o assume como
uma posição e um contributo
pertinentes.
José Luís Neto, da série High Speed Press Plate (2006) |
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