06 agosto, 2012

Espicaçar



Hélder Fil­ipe Olino Pereira, da série O Desemprego tem um Rosto
© Daniel Rocha


Espicaçar
(revista 2, Público, 29.07.2012)

Dois dias inteirinhos a passar fotografias e nada. Nem uma para amostra. Horas e horas a correr nomes, sinopses, cartas de intenções, legendas, biliões de fotografias (mais coisa menos coisa) e nada. Ninguém mostrou o que estamos a viver agora. Hoje, ontem. Ou desde há um ano (mais coisa menos coisa), que foi quando a troika veio cá ver se era verdade, se aquele bocado de Tejo emoldurado pelo Cais das Colunas à tardinha ficava mesmo carimbado na pele e na memória.


Não se sabe ao certo se os troikanos ficaram encantados com as águas que já correram “para os meridianos do paraíso”. Até porque isto aqui, para além de estar a léguas-mil do paraíso, já não é só luz e rio, como escreveu José Cardoso Pires. O que se sabe é que Emilio Morenatti ficou perplexo com o nosso atavismo para vermos (e captarmos) aquilo que de mais importante se tem passado à frente dos nossos olhos - um tempo de crise e de desnorte. O presidente do júri que este ano atribuiu o Prémio de Fotojornalimo Estação Imagem|Mora, um batido repórter da AP, teve de ir embora antes de se conhecerem os vencedores. Mas na véspera de levantar voo registou em vídeo um recado onde lamentou não ter encontrado um único portfólio que corporizasse os sentimentos de angústia, de incerteza, de descrença e de resignação que se instalaram num quotidiano pardacento, num país às voltas com as contas da mercearia por pagar e com os bancos à perna a ameaçar arrombar a porta com o agente de execução. Morenatti perguntou “porquê?”. Por que é que as 452 almas que lhes enviaram fotografias deixaram de lado o retrato da crise que está mais do que instalada? Morenatti: “Os fotógrafos têm que fiscalizar a crise. Têm que fotografar o que se passa em frente às suas casas. É importante sair à rua e medir o que se passa”. E depois da pergunta, uma pequena provocação como quem põe com jeitinho uma pitada de sal numa ferida aberta: “É preciso não deixar que seja um fotógrafo estrangeiro a contar [primeiro] as histórias que acontecem no nosso país.”


O puxão de orelhas valeu a pena. Não sei se por orgulho ferido ou se por sentido de urgência e de dever uns quantos deitaram mãos à obra, na mais nobre tradição das missões fotográficas que sempre acompanhou a caminhada histórica da fotografia. O projecto 12.12.12, que se deu a conhecer recentemente, agrupa gente da fotografia e da escrita e promete um diálogo cruzado lá para Dezembro (livro e exposição), um balanço de doze meses de “cobertura nacional da crise”. Aqui ao meu lado no jornal, Daniel Rocha decidiu começar simbolicamente no dia 1 de Maio um trabalho que pretende dar rosto aos números do desemprego. Durante um ano, publicará um retrato por dia num blogue. Olhares que não são ilustração. Existem mesmo. São 819 mil desempregados. Existem e têm rostos. E têm olhares, que podem chegar ao olhar de quem decide. Como dardos. Para espicaçar.

>12.12.12
>O Desemprego Tem Rosto

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