Tiago Silva Nunes, Crumbling Plum, da série Broken Strangers Beijing © Tiago Silva Nunes |
O fotógrafo e realizador Tiago Silva Nunes andou por quatro cidades onde as tensões entre o homem, a paisagem e o urbano são particularmente fortes. A exposição Broken Strangers Beijing, na galeria Pente 10, em Lisboa, é composta por dípticos que revelam esses diálogos em Londres, Lisboa, Beijing e Rio de Janeiro. Maria do Carmo Serén escreveu o ensaio sobre este trabalho:
Esta é uma Cidade que já não é
“Esta é uma cidade que já não é “a
Oriente”, essa expressão só portuguesa que falava de um exotismo conquistado,
de uma apropriação de mercador e soldado viajante. A Oriente de que Ocidente?
Em 7 mágicos dípticos, duas vezes sete
imagens conflituam na luta da globalização e dos conflitos da imagem fotográfica.
E, como sempre acontece na habituação dos gestos e das atitudes, (e é essa a
magia da contaminação), há perdas e ganhos mas uma nova identidade. Uma
complexa, intangível identidade que se veste de uma aparente ocidentalização e,
em paralelo, uma estranheza que a fotografia, rompendo e fraccionando o mundo,
lhe atribui e, rasgando a continuidade e a ordem das coisas, nos dificulta o
olhar.
A selecção não é, naturalmente, neutra.
Identifica a intimidade do sujeito do fotógrafo com os valores e males deste
nosso Ocidente em crise de memória. É o esplendor negativo das nossas cidades
tóxicas, criadas para manter a ordem do lucro, das coisas e dos homens em pouco
espaço: os prédios em altura de frieza modernista, o aparcamento pago, os
jardins de oxigénio para o jogging dos que cuidam do corpo, os condomínios de
“resort” dos ricos, o alcatroado, as habitações inglórias e os equipamentos
standard da circulação. Nestas aglomerações funcionais que o homem constrói e
dizemos sem humanidade, o mesmo homem isola-se com os seus devaneios, fecha-se
em si, parte: a solidão é o nosso corolário da vida utilitariamente programada.
Em busca da intangibilidade, da
estranheza do diferente, daquela alma que cada cidade constrói para se sentir
em casa, o fotógrafo escolheu os contrapontos que poderiam contaminar esse
destino global e que nos surgem como uma velha estampa chinesa: os jardins onde
árvores lânguidas se organizam no espaço para serem olhadas na sua fragilidade,
os pequenos santuários da Natureza, o amontoado de periferia dos seus hutongs,
velhos bairros aristocráticos agora desolados e erodidos mas ostentando, por
vezes, a sua baronia, - pedras lavradas, entradas destacadas, perdidas entre
arranjos apressados, o ritual na entrada daquela jovem, enfim, a Pequim da
nossa literatura exótica.
É pois uma cidade de signos, onde os
próprios signos nos são mostrados na ambivalência dos dípticos para gerarem a
compreensão do novelo onde entrançamos a vida e o futuro. Eles mesmos
interpretados de antemão, porque a fotografia, que não vive sem figuração e sem
criar referentes é, antes de tudo, o sujeito que manipula, enquadra, corta,
isola e compõe as imagens. Esse sujeito que cria sentido é, também ele,
manipulado, enquadrado, cortado, isolado e composto pelas suas crenças, pelo
imaginário que se afirma com a comunidade de base. E, naturalmente, pela sua
aprendizagem do meio técnico e social onde se fabricam e distribuem as imagens.
O Ocidente constrói-se através de
dicotomias, de bem e mal, de belo e feio, aberto fechado; afirmou o sujeito mas
perdeu a Natureza no interior da paisagem.
Hoje sabe da exigência da diversidade e
da inevitabilidade da contaminação. O tempo falsifica as certezas e a
continuidade das coisas perde-se no meio das novas soluções. Dicotomias são
meros sistemas de classificação e o sentido das coisas e das ideias parte
apenas dos afectos e dessas conjecturas pregnantes que o mundo nos proporciona
num primeiro e incerto olhar: o que faz a rapariga num barco sem destino? Para
quê o guarda-chuva da outra num dia de Sol? O que leva esses jovens, em
qualquer parte do mundo como aqui em Beijing a trilharem qualquer torre de Babel
para atingirem o céu?
O que impele o fotógrafo a terminar a
sua série com um regresso a uma Natureza de papel de prata, fluindo para a
jovem que a contempla?
E se o enredo desta selecção de imagens
nos pode levar a diversas reflexões e devaneios cognitivos, a sua sedução
repousa nesse olhar primeiro: são imagens de afecto que não voltarão a
repetir-se.”
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