17 agosto, 2012

o caderno

José Luís Neto, Caderno de Imagens, com curadoria de João Francisco Figueira e Vítor Silva



Realismo e visibilidade
 Nuno Crespo
(ípsilon, 10.08.2012)

Esta é uma edição singular. Não só porque a sua arquitectura é pouco comum — composta por fragmentos de textos justapostos às reproduções das imagens —, como porque ao habitual estatuto e à habitual pompa das edições dos livros de fotografia prefere os agrafos, uma capa em papel pardo e uma impressão excelente num papel convencional. O resultado é um “caderno de imagens” que além de reproduzir um conjunto de trabalhos de José Luis Neto (n. Satão, 1966) também reproduz uma sucessão de fragmentos de textos de autores como Deleuze, Blanchot, Proust, entre outros, e estabelece uma posição acerca da fotografia, da sua relação com o mundo, com os seus objectos e a sua actividade. As imagens de José Luis Neto invocam questões sobre o dispositivo, a percepção e a tensão figuração/abstracção.

A pertinência desta edição é incontornável, porque traz o corpo de trabalho de um artista para o centro do debate sobre a imagem, as suas teorias e políticas. Um corpo de trabalho que tem a característica de ser singular não só no modo como se constrói e vai desenhando um programa artístico, mas também no modo constitui uma firme posição no contexto da fotografia contemporânea. Desde o início da sua carreira que José Luís Neto se dedica a fotografar folhas brancas, a fazer imagens de fotografias antigas, de negativos, a manipular os mecanismos (motores e películas) e a fazer uma espécie de meta-fotografia. Não porque o seu trabalho fique além da fotografia, mas porque recusa as suas convenções e os protocolos mais correntes e, sobretudo, porque se afasta e perturba a relação essencial da fotografia com um objecto. Ou seja, aqui a fotografia é o seu próprio objecto: trata-se de uma espécie de gesto reflexivo ou, se se preferir, de uma tentativa de auto-consciência. Um virar-se da fotografia sobre si própria que tem como consequência mais imediata fazer da maioria da obra de José Luís Neto — e as séries reproduzidas neste “caderno” são disso um bom exemplo — uma investigação acerca das condições de possibilidade da fotografia. A este propósito, os “curadores” do livro (João Francisco Figueira e Vítor Silva, responsáveis pela escolha dos fragmentos que acompanham e dialogam com as imagens, citam um passo notável do Thomas l’obscur de Blanchot: “O seu olho, inútil para ver, ganhava proporções extraordinárias, desenvolvendo-se de uma maneira desmesurada e, estendendo-se sobre o horizonte, deixava a noite penetrar no seu centro para criar uma íris. Através deste vazio, era então o olhar e o objecto do olhar que se misturavam. Não apenas este olho, que nada via, aprendia a causa da sua visão. Ele via como um objecto, o que fazia com que nada visse. Nele entrava o seu próprio olhar, sob a forma de uma imagem, no momento trágico em que este olhar era considerado como a morte de toda a imagem.”

Ver através de um vazio, aprender a causa da visão e entrar no próprio olhar surgem como acções sinónimas, mas este vazio não é um vazio total que tudo absorve e transforma em nada; é o vazio referencial, ou seja, para este movimento do olhar cessam as distinções dentro/fora, interior/ exterior e em seu lugar surge o olho simultaneamente como sujeito e objecto, imagem e dispositivo. Por isso, a este vazio não corresponde a inexistência de objecto perceptivo, antes uma suspensão da relação linear com o exterior, como se o olho (que aqui serve como metáfora da fotografia) visse aliviada a exigência de realismo e se encontrasse destituído da ambição de reprodução do real: “Em arte, e tanto em pintura como em música, não se trata de reproduzir ou de inventar formas, mas de captar forças. É exactamente por isto que nenhuma arte é figurativa. A célebre fórmula de Klee, ‘não restituir o visível, mas tornar visível’, não significa se não isto mesmo.”

Esta citação de Deleuze (Francis Bacon. A lógica da sensação) sublinha a obra de arte como uma força que não representa, nem substitui (ou seja, não é uma força de representação), mas que é uma instância de aparição: uma força que cria a visibilidade. Ou seja, a visibilidade proporcionada pela obra de arte não reenvia para outro tempo, para outros objectos, para outras paisagens. A obra de arte não é um meio através do qual se vê, como uma janela com um vidro bem polido e transparente: é a própria visão.

Este mini-itinerário conceptual e estético pelo “caderno” de José Luís Neto não é cego às imagens produzidas pelo artista, mas apresenta o carácter mais essencial e determinante do seu trabalho. O qual é claro na recusa da figuração, não como opção, mas porque para José Luís Neto nenhuma arte é figurativa: em muitos momentos, as suas imagens parecem pinturas impressionistas em que o branco é um elemento central e estruturante, ponto central a partir do qual as manchas — que são as figuras e os objectos dos seu trabalho — se expandem e conquistam o espaço. E esta aparente abstracção não constitui um desvio da fotografia da sua natureza, do seu objecto, da sua ambição: porque “verdadeiro realismo significa: não representar objectos mas sim criá-los. Reproduzindo-os, apenas os sublinhamos esteticamente e preenchemos um mundo incompleto com interpretações e ficções.” (Carl Einstein, George Bracque).

Este é o contexto que este “caderno” cria para que possamos ver/perceber/entender as duas séries de José Luís Neto: High Speed Press Plate (2006) e July 1984 (2012). As séries não se prolongam, mas contaminam-se pelos problemas colocados e pela estrutura interna que constroem. Se na série mais antiga há uma total ausência de formas e é o reino de manchas informes que dá origem a paisagens mentais e profundas, na série mais recente surgem pessoas, interiores de casas, situações concretas do quotidiano. Mas esta aparição não significa assumir como tema das imagens esses objectos e o seu registo ou arquivo, até porque são mostrados em situações de dissolução, corrupção e desvanecimento, em momentos entre a visibilidade e a invisibilidade, a luz e a obscuridade.

Uma edição importante não só porque disponibiliza trabalhos de um autor importante da fotografia portuguesa contemporânea (desde 2005 não era dedicada nenhuma edição a José Luís Neto), mas também porque coloca o seu trabalho no centro do importante debate em curso e o assume como uma posição e um contributo pertinentes.



José Luís Neto, da série High Speed Press Plate (2006)

10 agosto, 2012

os trípticos


Europa, 1993-2003
© Paulo Nozolino


Usura é o título da próxima exposição de Paulo Nozolino que será inaugurada no dia 20 de Setembro no espaço BES Arte e Finança, em Lisboa. Este nome (inspirado no canto XLV do poeta Ezra Pound, litania crítica em relação ao ganhos provenientes de juros), a sala escolhida (ligada a um banco) e o momento de profunda crise económico-financeira que hoje atinge Portugal e a Europa podiam fazer antever uma mostra em tom crítico com o passado recente. Contudo, a intenção de Usura é mais profunda e procurará apelar “à memória dentro da actualidade e à compreensão da actualidade dentro da história”. Os nove trípticos escolhidos com o comissário Sérgio Mah abordam acontecimentos fracturantes ao longo do século XX naquilo que é um vasto comentário visual sobre “a infâmia” presente em “desvios traumáticos da Humanidade no decurso da modernidade capitalista” (Auschwitz, o declínio da Europa, o 11 de Setembro…). Motivado por uma abordagem que procura relacionar (confrontar, justapor) imagens, Nozolino recupera ainda conjuntos mais difíceis de situar em tempo e espaço, como o desaparecimento do mundo rural, a religião, a morte e a imigração. Para um fotógrafo que construiu obra sobretudo a partir de imagens únicas, esta exposição é particularmente relevante pelo facto de reunir pela primeira vez quase todos os seus trípticos que começaram a ganhar forma em 1999, com Untitled, Blodelsheim. Este momento, marca, aliás, uma viragem na maneira como passa a encarar a exposição do seu trabalho, mais interessada em potenciar a observação relacional e em estimular uma consciência crítica a partir de um movimento dialéctico entre imagens.

08 agosto, 2012

Chris Marker

Páginas do livro Portugal, ed. Seuil, 1957


O cineasta Chris Marker morreu no dia 30 de Julho. Autor multifacetado, nos primeiros de carreira, em 1957, passou por Portugal onde registou um conjunto de fotografias que desafiaram o cânone do Estado Novo. A historiadora de Arte Susana S. Martins estudou a obra de Chris Marker para um doutoramento e o texto que publicou nas páginas do Público resulta dessa investigação que pode ser consultada aqui.


Os mistérios de Chris Marker em Portugal
Susana S. Martins, historiadora de arte (IHA-FCSH/UNL)

(Público, 06.08.2012)

Muito antes de se ter tornado no aclamado realizador de La Jetée (1962) ou Sans Soleil (1982), Chris Marker começou por se destacar noutras áreas, nomeadamente como jornalista, poeta, ficcionista e crítico de literatura e de cinema em publicações de referência como os Cahiers du Cinéma ou a revista de esquerda Esprit. Os anos do pós-guerra (guerra essa onde Marker havia participado, lutando activamente na Resistência) testemunharam também o início do seu percurso fotográfico e cinematográfico. Tradicionalmente associado à Nouvelle Vague, a família artística de Marker é contudo mais perceptível no Groupe Rive Gauche - o colectivo de realizadores que, juntamente com Marker, integrava as figuras de Agnès Varda, Alain Resnais ou Jacques Demy, numa vocação mais afectiva do que artisticamente programática.

Nesses anos, e a par dos seus vários ofícios, Chris Marker lançou-se num peculiar projecto editorial que permaneceu relativamente desconhecido - obscurecido talvez pelo fulgor mediático da sua obra posterior. Entre 1954 e 1958, Marker trabalhou para as edições Seuil, dirigindo e editando uma série de livros de viagem pouco convencionais: a colecção Petite Planète, onde também participou, ocasionalmente, com fotografias e textos da sua autoria. Nestes pequenos volumes dedicados aos diferentes países do mundo, a intervenção de Marker fez-se sentir de imediato, não apenas na moderna e experimental montagem (foto)gráfica mas também na profunda heterodoxia dos conteúdos textuais.

As habituais referências à história e costumes de cada país ou povo estão presentes, mas estes livros distanciam-se claramente das descrições idílicas e enaltecedoras que geralmente povoam os livros de viagem. Eles surpreendem por realçarem narrativas menos óbvias, comentários imprevistos, críticas sociais e políticas. As chocantes fotografias de mortos ou de execuções públicas que integram, por exemplo, o volume sobre a China, dão bem conta de como os livros de viagem da Petite Planète frustram todas as expectativas deste género editorial. Particulares objectos híbridos, onde a reportagem fria se funde com a opinião subjectiva, onde os discursos verbais e textuais se equivalem, e onde a poesia e a política se tornam unas, estes livros possuem já muitos dos ingredientes do pequeno planeta de Chris Marker, sendo também premonitórios dos referenciais ensaios fotográficos, como Coréenes (1959) ou Le dépays (1982), que o artista viria a publicar mais tarde.

Em 1957, é lançado o 16º volume desta colecção, dedicado a Portugal. Na capa, uma jovem mulher, sorridente e tradicional, dá-nos as boas vindas (todas as capas da colecção são compostas de estereotipadas e acolhedoras figuras femininas). O autor do texto foi Franz Villier, e é ele o responsável pelo tom muitas vezes sarcástico e jocoso, incapaz de esconder uma certa superioridade (francesa?) face à cultura e aos hábitos portugueses. Por sua vez, a edição visual desenvolvida por Chris Marker é claramente mais interessante.

No volume sobre Portugal, Marker combinou imagens das mais diversas proveniências - desde gravuras antigas a fotografias de Cartier-Bresson ou a outras, oriundas de agências fotográficas - num arranjo final em que o todo é sem dúvida maior do que a soma das partes. Posicionando-se num quadrante político claramente distinto do que governava Portugal nesses anos, fervoroso anticolonialista e avesso a todas as formas de autoritarismo, Chris Marker assume a sua posição pessoal com o seu mais refinado trunfo: a Arte. É então visualmente, pelo rigoroso arranjo fotográfico, que Marker manifestará a sua visão peculiar.

Muitas das imagens seleccionadas são profundamente desconcertantes. Distanciam-se do elenco laudatório de monumentos e paisagens que dão normalmente corpo a um livro de viagens. Pela mão de Marker, a Torre de Belém ou o Mosteiro dos Jerónimos, locais maiores da celebração nacional, são estrategicamente representados sem qualquer tipo de grandeza. A Torre de Belém surge numa imagem escura e sem detalhe, completamente (e simbolicamente) rodeada de um lamaçal que tem um protagonismo desmesurado no plano da imagem. Os Jerónimos, por sua vez, aparecem também em segundo plano, numa fotografia em que um descuidado terreno, cheio de arbustos e vazio de interesse (ainda reminiscente da Exposição do Mundo Português, aí realizada anos antes?), ganha protagonismo e parece ser o elemento central da composição.

Conhecedor atento do eficaz plano iconográfico do regime (criado e perpetuado pelo SPN/SNI), Marker recusa replicar essas visões de Portugal, em que o país surgia como uma espécie de viagem ao passado, onde o tempo havia congelado as tradições mais antigas e autênticas que ainda persistiam vivas, numa Europa cada vez mais moderna e tecnológica. É deste modo que Marker trava uma verdadeira batalha contra as imagens reiterativas das narrativas identitárias portuguesas, quase sempre orientadas para o glorioso passado de feição marítima. Uma batalha de imagens à qual Marker riposta com outras imagens que recusavam favorecer uma realidade que não era afinal assim tão gloriosa. Não admira, por isso, que logo em Julho de 1957, o livro tenha sido oficialmente proibido pela censura em Portugal.

Se o mar é um elemento central da iconografia portuguesa, passada e presente, Marker arreda do seu livro qualquer imagem oceânica. A Nazaré, paragem obrigatória para todos os fotógrafos estrangeiros que passaram por Portugal nesses anos, de Boubat a Dieuzaide, é aqui representada por fotografias de um pescador de feição dura, roto e descalço, caminhando no asfalto sem qualquer conotação heróica. A magnífica imagem que abre o capítulo Os Pescadores é da autoria da sua amiga de sempre, Agnès Varda. Em vez da faina marítima, mostra um rapazinho que nos sorri enigmaticamente por detrás de uma máscara feita de uma cabaça, realçando o carácter de encenação das representações nacionais.

É também pela mão de Chris Marker que se publica neste livro, e pela primeira vez, a célebre fotografia que Varda havia tirado um ano antes em 1956, popularizada hoje, em publicações e postais, e conhecida como Sophia Loren au Portugal. No volume de Portugal, a imagem ainda não possui tal título e é esta a fotografia que abre precisamente o capítulo dedicado a Lisboa, intitulado A condessa dos pés descalços. Numa referência ao filme homónimo de Joseph L. Mankiewicz, com Bogart e Gardner, esta imagem oferece uma bela personificação da cidade de Lisboa, num forte jogo de contrastes simbólicos.

O livro sobre Portugal tem ainda outra importante particularidade. Para além da edição fotográfica a cargo de Marker, este é um dos poucos volumes onde encontramos fotografias da sua autoria (os outros dois são a China e a URSS). Chris Marker esteve portanto em Portugal em 1957, fez algumas fotografias e decidiu incluir nada menos do que 22 imagens suas neste volume.

Como viu então Marker no nosso país? Viu mais, viu mais além? Talvez sim. Mas acima de tudo, e como sempre, Marker viu diferente. O melhor testemunho deste seu olhar encontra-se numa sequência de seis imagens, completamente autónomas do texto, que configuram um pequeno ensaio visual, sob o título Petit cinéma des rues ou les Mystères de Lisbonne. Aludindo à literatura e designando por cinema um conjunto de fotografias, Marker confunde as especificidades mediáticas como ninguém. Recordem-se os casos do livro sobre a China, que inclui sequências fotográficas a que ele chama de curtas-metragens, ou o subtítulo (un photo-roman) que encontramos em La Jetée, obra cinematográfica composta maioritariamente por fotografias.

A montagem ensaística deste "pequeno cinema das ruas", traduz-se numa justaposição intrigante de imagens e cenas, aparentemente sem ligação entre si, que definem ainda assim uma narrativa alternativa. Uma ressonância surrealizante trespassa as diferentes fotografias e lança-nos na ambiguidade de um olhar subjectivo e numa multiplicidade de interpretações.

Tentando reconstituir a sua psico-geografia, vemos que Marker andou pelo centro e pela Baixa, onde encontrou luvas suspensas, e achou no Bar Palmeiras dos Anjos (as palmeiras ainda resistem na Almirante Reis) uma atracção mais interessante que qualquer outro monumento da capital. Às ruas movimentadas do Chiado, contrapôs a desolada imagem de uma enorme parede cega onde apenas se consegue ler, nos despojos de um cartaz rasgado, a oportuna legenda O Mundo do Silêncio, numa portentosa metáfora para um país silenciado a vários níveis.

Nos restantes dípticos articulou equilibradamente imagens de jovens e velhos, de homens e mulheres. A última imagem desta sequência foto-cinematográfica é uma das mais surpreendentes. Ao lado de uma figura feminina capturada numa suspensão indefinida, um rapazinho olha quase em espanto para um cenário onde uma poderosa figura escultórica luta desesperadamente para se erguer do peso desmesurado que lhe pende sobre os ombros, e do qual não parece conseguir libertar-se. Este quadro enigmático dissolve-se um pouco quando descobrimos que se trata afinal de um dos atlantes que estão na base do monumento ao Marquês de Pombal, projectado por Adães Bermudes. Estranheza em estado puro: foi essa a parcela que Marker extraiu do centro da Rotunda para publicar no livro sobre Portugal.

O arranjo das imagens foi feito de acordo com os princípios da montagem cinematográfica e o título deste ensaio torna-se assim por demais acertado. Sem legendas ou outros elementos que nos ajudem a descodificar o que vemos, este texto visual define uma construção pessoal que também pretende ser extraordinariamente criativa do ponto de vista da recepção.

Marker solicita assim aos seus espectadores aquilo que também exigia de si mesmo: um profundo investimento e envolvimento pessoal com aquilo que vemos, com o mundo. Para retratar um país, Portugal, Chris Marker montou, num livro, um objecto fílmico feito de fotografias, numa narrativa múltipla e alheia a leituras unívocas. Tal como os mistérios de Lisboa, a sua obra assegura-nos que os mistérios de Marker continuarão como sempre, imperscrutáveis.



*Obrigado Susana


Páginas do livro Portugal, ed. Seuil, 1957

06 agosto, 2012

Espicaçar



Hélder Fil­ipe Olino Pereira, da série O Desemprego tem um Rosto
© Daniel Rocha


Espicaçar
(revista 2, Público, 29.07.2012)

Dois dias inteirinhos a passar fotografias e nada. Nem uma para amostra. Horas e horas a correr nomes, sinopses, cartas de intenções, legendas, biliões de fotografias (mais coisa menos coisa) e nada. Ninguém mostrou o que estamos a viver agora. Hoje, ontem. Ou desde há um ano (mais coisa menos coisa), que foi quando a troika veio cá ver se era verdade, se aquele bocado de Tejo emoldurado pelo Cais das Colunas à tardinha ficava mesmo carimbado na pele e na memória.


Não se sabe ao certo se os troikanos ficaram encantados com as águas que já correram “para os meridianos do paraíso”. Até porque isto aqui, para além de estar a léguas-mil do paraíso, já não é só luz e rio, como escreveu José Cardoso Pires. O que se sabe é que Emilio Morenatti ficou perplexo com o nosso atavismo para vermos (e captarmos) aquilo que de mais importante se tem passado à frente dos nossos olhos - um tempo de crise e de desnorte. O presidente do júri que este ano atribuiu o Prémio de Fotojornalimo Estação Imagem|Mora, um batido repórter da AP, teve de ir embora antes de se conhecerem os vencedores. Mas na véspera de levantar voo registou em vídeo um recado onde lamentou não ter encontrado um único portfólio que corporizasse os sentimentos de angústia, de incerteza, de descrença e de resignação que se instalaram num quotidiano pardacento, num país às voltas com as contas da mercearia por pagar e com os bancos à perna a ameaçar arrombar a porta com o agente de execução. Morenatti perguntou “porquê?”. Por que é que as 452 almas que lhes enviaram fotografias deixaram de lado o retrato da crise que está mais do que instalada? Morenatti: “Os fotógrafos têm que fiscalizar a crise. Têm que fotografar o que se passa em frente às suas casas. É importante sair à rua e medir o que se passa”. E depois da pergunta, uma pequena provocação como quem põe com jeitinho uma pitada de sal numa ferida aberta: “É preciso não deixar que seja um fotógrafo estrangeiro a contar [primeiro] as histórias que acontecem no nosso país.”


O puxão de orelhas valeu a pena. Não sei se por orgulho ferido ou se por sentido de urgência e de dever uns quantos deitaram mãos à obra, na mais nobre tradição das missões fotográficas que sempre acompanhou a caminhada histórica da fotografia. O projecto 12.12.12, que se deu a conhecer recentemente, agrupa gente da fotografia e da escrita e promete um diálogo cruzado lá para Dezembro (livro e exposição), um balanço de doze meses de “cobertura nacional da crise”. Aqui ao meu lado no jornal, Daniel Rocha decidiu começar simbolicamente no dia 1 de Maio um trabalho que pretende dar rosto aos números do desemprego. Durante um ano, publicará um retrato por dia num blogue. Olhares que não são ilustração. Existem mesmo. São 819 mil desempregados. Existem e têm rostos. E têm olhares, que podem chegar ao olhar de quem decide. Como dardos. Para espicaçar.

>12.12.12
>O Desemprego Tem Rosto

 
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