24 junho, 2012

na fábrica


Stephen Shore, Ivy Nicholson, the Factory Party, circa. 1965-1967
©Stephen Shore


Da Factory para o mundo

A fotografia no viveiro pop de Andy Warhol
(ípsilon, Público, 15.06.2012)

Os reflexos sempre tiveram uma relação agridoce com a fotografia – quando aparecem nunca se sabe bem se é defeito ou feitio. Vinda de um fotógrafo, a acção de forrar a prateado um lugar onde vai trabalhar parece, no mínimo, arriscada, não fosse esse lugar a Factory, viveiro de arte caleidoscópico, concebido para ver, ser visto, ver quem vê, ver o reflexo, a sombra, o original, a cópia, o duplicado, o triplicado... Quando se tornou fotógrafo da casa, em meados dos 60, Billy Name já tinha o quarto forrado com tinta prateada e folhas de alumínio. Andy Warhol viu e gostou tanto que lhe pediu uma cópia da decoração para o atelier. E com o prateado vieram também os espelhos partidos, por onde já andavam máquinas de imagem de toda a natureza e feitio. A Factory sempre se deu bem com objectivas e é Name (nascido William Linich) quem fornece (em entrevista a Collier Schorr, 1997) a metáfora perfeita para o que se passava no seu interior: “Andy era fascinado por qualquer coisa tecnológica. Era como se a Factory se tivesse transformado numa câmara de caixa grande – entrávamos nela, ficávamos expostos e revelávamo-nos.” Este festim exibicionista, saturado e performativo alimentava-se da imagem e, logo, vivia bem com reflexos imediatos, estivessem eles na superfície de uma polaroid, nos quadrados de uma fotomaton ou na distorção prateada devolvida pelo espelhado das paredes.


Com luzes ténues, chão preto e parte das paredes pintadas a negro, o piso subterrâneo do Teatro Fernán Gómez, de Madrid, está mais perto da imagem de uma camera obscura do que de um lugar onde tivessem congelado para sempre o momento exacto do disparo de um flash. Mas, por estes dias, há pelo menos uma parede forrada a prateado para que quem visite a exposição De la Factory al Mundo. Fotografía y la comunidade de Warhol tenha a sua dose de reflexo e possa experimentar uma nesga da estética proto-glam que ficou como uma das imagens de marca do atelier, casa de festas, lugar de experimentação que foi a primeira morada da Factory, no número 231 da rua 47 Este, de Nova Iorque. Com lugar cativo na secção oficial do festival de fotografia e artes visuais PHotoEspaña, aquela que é exposição-estrela (não podia estar lá de outra maneira) entre as mais de 300 inaugurações agendadas para a edição deste ano mostra um conjunto de obras de dez fotógrafos e artistas visuais com registos e métodos de trabalho muito distintos (Richard Avedon, Cecil Beaton, Stephen Shore, Billy Name…). São singularidades que formam um mosaico rico e que dão uma boa panorâmica da diversidade da fauna que vivia na Factory, que passava por ela e que a admirava. Apesar do ambiente “sempre em festa”, a comissária Catherine Zuromskis, historiadora de arte e especialista em imagem vernacular, fez questão de sublinhar no dia da inauguração (com as folhas de alumínio como cenário, claro) que “havia também quem criticasse” e “achasse que era palco de excessos” (o trabalho fotojornalístico de Nat Finkelstein é dos menos comprometidos com os ideais pop de Warhol).


Andy Warhol, já se sabe, vivia obcecado com as imagens (“Uma das boas razões para me levantar de manhã é saber que tenho um rolo de fotografias para revelar”). Alguém que abraçou a multiplicidade, a cópia e a serialidade como ele abraçou só podia ter com a fotografia na Factory uma relação do tipo “amigo que pode aparecer e entrar sem ser convidado”. A máquina de produção em série em que se transformou “a oficina” warholiana precisava da imagem fotográfica para garantir o máximo de publicidade e alarde, mas a relação de Andy com o suporte em si e os mecanismos que o criam esteve sempre longe do cânone e de um uso que se possa chamar profissional. Achava demasiado complicado ter de pensar em vários pormenores técnicos antes de disparar. Preferia a instantaneidade à nitidez, a informalidade à exposição correcta ou à composição equilibrada. Fascinava-o a vulgaridade, a rapidez, a fotografia vernacular e o amadorismo (juntou caixas de fotografias que os clientes de laboratórios desistiam de levantar).


Da fotografia enquanto suporte comercial, interessava-lhe sobretudo a sua fecundidade, mecanismo gerador de infinitas imagens, poderoso meio de convencer, de registar e de transmitir mensagens de leitura universal. E por isso procurou máquinas e formatos que lhe facilitassem o registo puro e duro do que lhe aparecia pela frente (tinha dezenas de máquinas compactas e gastava em média um rolo de 36 exposições por dia). E por isso também deixou para outros a tarefa de documentar com outro pendor estético, porventura mais próximo da convenção, a dinâmica social e o frenesi criativo que atravessou as diferentes moradas da Factory, sempre povoada de uma mistura ininterrupta de assistentes de estúdio, empregados, amigos e visitantes. Apesar de haver fotografias da autoria do próprio (algumas das quais libertadas há pouco tempo pela fundação que gere o património do artista e pouco conhecidas) e dos seus colaboradores, a exposição no Fernán Gómez procura fazer o retrato da comunidade contracultura que ali germinou novas propostas através do olhar dos que rodearam o estúdio com motivações díspares.


Name, o surfista prateado

Talvez a máquina de imagens em que se transformou a Factory não tivesse tido o sucesso que veio a ter sem o trabalho fotográfico de Billy Name, um dos responsáveis pelo mito prateado em que se transformou o estúdio durante os anos 60, não tanto por ter forrado as paredes, mas por lhe ter dado imagem. Name, que trabalhava como iluminador de palco, foi contratado por Andy para fazer um registo exaustivo dos processos criativos e do quotidiano do atelier que incluía todo o séquito warholiano (Edie Sedgwick, Mary Woronov, Ondine, Candy Darling…), quer se tratasse de trabalho ou diversão, se é que é possível distinguir as duas coisas num lugar como a Factory. Como fotógrafo da casa, Billy Name tinha o privilégio de presenciar momentos únicos e de estar nos instantes de maior descontracção no seio do grupo. Apesar de ter feito imagens a preto e branco e a cores, são as primeiras que melhor conseguem definir o espírito da casa e aquelas que permanecem no imaginário cultural, talvez graças à sua queda para as superfícies refulgentes, para os contrastes acentuados e dramáticos. “A obra de Name [na Factory] capta uma cultura que tanto pode ser ordinária como extraordinária, que permite às pessoas comuns converterem-se em estrelas de cinema e que mostra as estrelas de cinema como pessoas comuns”, escreve Zuromskis no catálogo da mostra.


Como sinal de que tudo se passava com uma grande dose de informalidade e de que Andy Warhol nunca achava demais o registo fotográfico daquilo que fazia (qual seria a sua medida da exaustão visual?), Stephen Shore ainda andava na escola secundária quando recebeu um sim para entrar com a sua câmara na Factory. Sem o nunca o rejeitar, os residentes do estúdio também nunca o aceitaram completamente, uma tensão revelada em muitos olhares desconfiados (e às vezes reprovadores) que uma atitude entusiasta e curiosa de que chega a um circo artístico não conseguiu dissipar. As imagens de Shore, contemporâneas das de Name, são de composição mais cuidada, preferem isolar os sujeitos em poses alienadas, focam muitas vezes pormenores da floresta warholiana só possíveis de vislumbrar por alguém que vem de fora e até resvalam para o trágico-cómico, como a profética imagem de uma mulher a apontar uma pistola de brincar à cabeça de Andy Warhol. Vedado a momentos mais intimistas, são dele muitas das imagens de festa que marcou a identidade daquele espaço.


Num extremo oposto ao fulgor narrativo e profissionalismo das fotografias de Shore, estão as instantâneas Polaroid de Brigid Berlin, uma das superestrelas elevadas pela Factory, e as tiras de fotomatón com que Andy Warhol se deslumbrou durante anos. Quando se tratava de captar a camaradagem e o rodopio social à volta do grupo (Berlin foi a mais fiel compagnon de route de Warhol, controlou a recepção da Factory durante anos), ambos cultivaram um gosto particular por formatos vernaculares. No final dos anos 60, Brigid Berlin terá sido uma das primeiras a experimentar polaroids com dupla exposição. Fez retratos incisivos e sobreiluminados, deixando uma das facetas imagéticas mais cruas do ecossistema humano que gravitava à volta do líder. A par do negativo quadrado da Kodak Instamatic, a Polaroid foi também um dos formatos preferidos de Andy que captou sobretudo naturezas mortas e nus masculinos. Terá sido Berlin a iniciá-lo na estética do instantâneo, na satisfação pela imagem imediatamente concretizada. Aqui Andy nunca aparece. Prefere o prazer de ver do que o de ser visto.


Andy, agarrem-no se puderem

Tido como distante no trato e emocionalmente frio, Andy Warhol podia estar no centro de tudo, mas não queria (ou não queria que parecesse que queria) ser o centro de tudo, não fosse ele contra o endeusamento da noção de autoria. Em “Just Kids” (“Apenas Miúdos”, Quetzal, 2011), Patti Smith escreve que Andy costumava comportar-se como “uma enguia”, alguém que era “perfeitamente capaz de se esquivar a qualquer confronto significativo”. Quando ainda era um aspirante a fotógrafo, Robert Mapplethorpe sonhava conhecê-lo, mas Patti duvidava que um eventual encontro pudesse ser produtivo. Uma imagem certeira dessa postura esquiva é a fotografia panorâmica de grandes proporções feita por Richard Avedon, onde o fundador da Factory surge de braços cruzados, a um canto da imagem e a olhar para fora dela, como se estivesse plenamente consciente do perigo de eclipsar a importância do seu séquito de superestrelas queer na cena.


Foram inúmeros os fotógrafos que passaram pela Factory nas suas várias moradas. Uns procuraram fazer parte do Olimpo da arte pop, buscaram a fama, outros quiseram testemunhar o processo, o êxtase criativo em comunidade, e outros simplesmente preferiram divertir-se enquanto disparavam fotografias. A presença da imagem fotográfica na Factory foi absoluta, epidérmica e obsessiva. A exposição comissariada por Catherine Zuromskis tem a virtude de mostrar em proporções equilibradas (e diversificadas) registos mais próximos do documento puro e instantâneos do quotidiano, da intimidade e da dependência de uma comunidade em gerar imagens, qualquer que fosse o formato, o suporte, o lugar ou o sujeito. Os objectivos: chegar a um público cada vez amplo e heterogéneo, chegar à difusão, ao consumo e à consciência globais.


Apesar de omnipresente na sua vida e na vida do espaço que funcionava como uma extensão natural da sua existência, Andy Warhol dá a entender, durante uma entrevista à American Photographer, em Outubro de 1985, que usa o suporte fotográfico apenas porque sim, apenas porque costuma sair sempre de casa “com uma câmara no bolso”, como quem calça os sapatos para não andar descalço. Nos últimos anos de vida, Andy continuou a fotografar compulsivamente, mas cada vez mais fora do universo da Factory e num registo pessoal. Através destas imagens, vemos como ele viu o mundo fora do conforto do seu espaço e dos rostos familiares. Como não podia deixar de ser, as milhares de fotografias que resultaram de várias viagens pelo mundo tiveram, pelo menos, um espectador, o fotógrafo Christopher Makos. Ou seja, alguém de confiança que pudesse continuar a registar o “espectáculo visual Andy” no seu lugar. Makos não era um fotógrafo extraordinário, mas o jogo de imagens que conseguiu estabelecer com Andy a viajar e a fotografar em contextos estranhos ao seu habitat natural resistem como poderosos documentos, como se de um diálogo visual incessante se tratasse. Diálogo visual que está na fotografia de Makos que encerra a exposição onde Warhol surge de câmara em riste. O título: “Andy Shooting Me, and You Too”.



Stephen Shore, Edie Sedgwick using the only phone in the Factory, circa. 1965-1967
©Stephen Shore



Christopher Makos, Andy Shooting Me, and You too, 1986
©Christopher Makos
  

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