01 junho, 2011

conhecer


Adelino Lyon de Castro


No dia em que se assinalaram os 100 anos da abertura do Museu do Chiado, a 26 de Maio, foi lançado o catálogo da exposição Adelino Lyon de Castro - O Fardo das Imagens, comissariada por Emília Tavares. O núcleo de imagens escolhido (a partir do espólio depositado no Museu) revela bem o talento e a audácia de mais um fotógrafo que injustamente se tem mantido na escuridão do arquivo e no esquecimento de quase todos. Espera-se que a concretização desta exposição possa trazer à luz novas pistas de entendimento da obra fotográfica de Adelino Lyon de Castro. Depois do que está à vista no Museu do Chiado, resulta evidente que a etiqueta do salonismo bacoco que foi colada a quase toda a fotografia que se fez em Portugal nos anos 40 e 50 deixa de fazer sentido.
A mostra do Museu do Chiado, concebida de forma exemplar, ainda pode ser visitada até ao dia 12 de Junho. Este é o texto publicado pouco depois da inauguração:

Adelino Lyon de Castro - O fotógrafo cúmplice
Lucinda Canelas, P2, Público (11.05.2011)

Adelino Lyon de Castro não é um fotógrafo neo-realista. Mas quem, olhando para as suas
imagens, se lembra de escritores como Alves Redol ou Carlos de Oliveira e não é um especialista na fotografia portuguesa dos anos de 1940 e 1950 pode facilmente deixar-se enganar. “A componente realista está lá, mas a sua abordagem é sobretudo humanista porque ele faz uma fotografia muito próxima das pessoas”, diz Emília Tavares, comissária d’O Fardo das Imagens (1945-1953), patente do Museu do Chiado, em Lisboa.

Passadas muitas horas a percorrer o espólio de Adelino Lyon de Castro (1910-1953), doado ao Museu do Chiado há dois anos pelo seu sobrinho, Tito, na sequência da exposição Batalha de Sombras (Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2009), Emília Tavares acabou por escolher cerca de 70 fotografias das 3500 imagens disponíveis em provas e negativos, guardadas em dezenas e dezenas de envelopes que o autor nunca perdeu tempo a identificar. Fundador, com o irmão Francisco, das Publicações Europa-América, Lyon de Castro era um amador, como muitos dos seus contemporâneos que faziam parte dos fotoclubes e participavam nos salões de fotografia, organizados pelo regime ou não. Mergulhar neste espólio que está aberto a investigadores e críticos, sublinha a comissária e conservadora do Museu do Chiado, permitiu identificar os temas dominantes da sua fotografia e perceber até que ponto ela pode ser vista como uma forma de resistência ao Estado Novo.

“O elemento diferenciador da fotografia de Adelino Lyon de Castro é a atenção e o cuidado que ele dedica ao tema do trabalho. Outros fotógrafos seus contemporâneos tratam dele, mas de forma mais esporádica, menos latente”, explica Emília Tavares. “E esse tratamento mais intenso é um reflexo ideológico. Ele mostra o que a fotografia do regime procura esconder.” Estão lá as crianças descalças e os trabalhadores “à jorna” que, apesar de tudo, insistem em ler, aparentemente para defender que a educação e a cultura eram um desejo do povo e podiam estar ao seu alcance e não apenas das elites. Estão lá os estivadores no porto ou os homens do campo, fisicamente deformados pelo peso das sacas que carregam aos ombros. Estão lá os pedintes e outros excluídos que Salazar se esforçava por confinar aos asilos do Estado ou das misericórdias, dizendo que a mendicidade não passava de um vício.

O título da exposição – O Fardo das Imagens – não decorre apenas da profusão de exemplares de homens e mulheres carregando cestos, tabuleiros e outros pesos que a comissária encontrou no conjunto que Tito Lyon de Castro doou ao museu. É sobretudo o resultado da leitura que deles é feita por Emília Tavares: “Estes corpos vergados pelo trabalho não ficam apenas disformes pelo esforço. É também a sua condição social de exclusão que os marca, que os transforma. Mas estas imagens, algumas delas quase épicas, são, ao mesmo tempo, de uma imensa dignidade, como se Adelino Lyon de Castro quisesse com elas mostrar que transportar um fardo aos ombros era uma forma de combater essa exclusão, uma maneira de resistir.”

Os barcos dos pescadores da Costa da Caparica, onde o fotógrafo passava grandes
temporadas a acampar com familiares e amigos, entre eles o sobrinho Tito, estão bem
representados, formando uma espécie de microfilme, que na exposição encontra paralelo na sequência do homem já velho que passeia na rua de uma aldeia por identificar ou na do grupo que se entrega à desfolhada.

Humanismo do pós-guerra
Nestas micro-histórias, torna-se claro que a fotografia de Adelino Lyon de Castro vai da encenação mais cuidada, com uma grande preocupação geométrica, em que tudo parece perfeitamente arrumado no espaço, como no caso das mulheres que vendem peixe numa banca de rua, ao quase instantâneo. “Muitos dos seus retratos parecem apanhar o retratado de surpresa, mas outros têm-no em pose, quase como se Adelino fizesse da natureza um estúdio.”

Era na natureza, aliás, que se sentia bem. Praticante de atletismo, basquetebol e até rugby, Lyon de Castro privilegiava o campismo porque ele lhe dava um contacto mais directo com o campo ou o mar, e servia, ao mesmo tempo, os “ideários de liberdade e de companheirismo” que para ele eram tão importantes.

Ex-militante do Partido Comunista Português desde 1939, continuava a publicar com o irmão na Europa-América livros que o regime de Salazar condenava e a dar espaço a escritores como José Cardoso Pires, Mário Dionísio ou José Régio no Ler – Jornal de Letras, Artes e Ciências, que criou com Francisco em 1952 (ele era editor, o irmão o director) e que a censura viria a suspender um ano mais tarde, a pretexto da sua morte.

“Nos seus excluídos há um grande abandono, um imenso desalento, uma angústia existencial… São fotografias com uma grande carga emocional, mas muito ricas do ponto de vista formal e ideológico”, diz a comissária. “Têm tudo a ver com o grande movimento humanista da fotografia do pós-guerra.”

A relação de grande cumplicidade que deveria estabelecer com quem retratava – “ficamos com a sensação de que ele precisava de conhecer e compreender o que estava a fotografar”, fosse uma situação ou uma pessoa – era uma das características do processo de trabalho de Lyon de Castro, área que a exposição quer dar a conhecer, através das provas que têm marcados a caneta os enquadramentos que pretendia, ou de outras em que se percebe, numa ampliação posterior, que fez questão de vincar os contrastes, tornando os negros mais densos (particularmente evidente na fotografia de uma mulher sobre um pequeno pontão, junto à água).

A comissária, que chegou a pensar chamar à exposição Imagens para uma Romântica Revolução, não deixa de sublinhar “a realidade poetizada” de fotografias como Lavadeiras do Mondego ou Ex-Homens, explicando que havia por parte destes fotógrafos que se opunham ao regime um desejo de aproximação ao povo que acaba por se cumprir sobretudo num sentido: “A fotografia sempre foi de difícil assimilação e marginal. Mário Dionísio escrevia já sobre a possibilidade do olhar do fotógrafo alterar a própria realidade, mas isso era difícil de explicar à população em geral, que não sabia ler. Na utilização da fotografia como veículo de propaganda ideológica, o Estado Novo foi muitíssimo mais eficaz do que os seus opositores.”

E, para o comprovar, basta ver as fotografias saídas da colecção do Museu de Arte Popular que Emília Tavares escolheu para entrarem em diálogo com as de Adelino Lyon de Castro, ao lado de outra de Carlos Relvas e de pinturas de Mário Eloy, Eduardo Viana e Abel Salazar.

Sem comentários:

 
free web page hit counter