26 junho, 2011

Alécio


Alécio de Andrade, da série Le Louvre et et ses Visiteurs



Louvre
Felizes no museu
Lucinda Canelas
, Público, P2 (11.06.2011)

De Leica na mão e com vontade de dançar, Alécio de Andrade caminhava pelas ruas de Paris. Usava muitas vezes esta imagem da dança quando falava da sua relação com o que fotografava. “As pessoas não se apercebem da minha chegada. Preciso provocar a dança”, dizia. Ouvimos Patricia Newcomer, sua mulher, falar deste fotógrafo brasileiro e ficamos com a sensação de que teríamos gostado de o conhecer, de conversar com ele sobre poesia e pintura, de o ver ao piano. Outra vez Alécio: “[As pessoas] estão lá, como para me permitir conferir um certo ritmo à minha dança. Quero dizer que estão presentes de corpo inteiro. Os pés são muito importantes, precisam estar bem colocados, precisam escolher o seu território. O corpo inteiro determina o ângulo de onde o olho vê. É o que chamo de contradança.”

Alécio de Andrade parece ter dançado com milhares de visitantes do Museu do Louvre, em Paris, durante 40 anos. Começou a fotografá-los quando deixou o Brasil e só terminou em 2002, um ano antes da sua morte. O resultado está nas 62 imagens de Le Louvre et ses Visiteurs (também o nome do livro publicado em 2009 pelas edições Le Passage), que o PHotoEspaña expõem na Casa da América, em Madrid, até 11 de Setembro. Escolhê-las, das 12 mil que Alécio de Andrade tirou enquanto percorria as salas e corredores do museu parisiense, foi “muito difícil”, disse Patricia ao P2, na véspera da inauguração. “Todas me pareciam maravilhosas. Alécio tinha o projecto do livro, mas fez maquetas sucessivas e nunca ficava satisfeito.” Foi ela que acabou a tarefa, com a ajuda de um amigo.

Todas a preto e branco, com legendas em que à data se junta informação sobre os quadros ou esculturas que nelas figuram, as fotografias de Le Louvre et ses Visiteurs são uma viagem pela história da arte fazendo, ao mesmo tempo, um retrato do próprio museu, que no ano passado teve 8,5 milhões de visitantes.

“Com humor e poesia mas com a precisão de um etnólogo, o fotógrafo fixou a variedade das gerações, das atitudes, dos gestos, da vestimenta, revelando um espantoso abandono dos corpos, uma liberdade”, escreveu o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin. Quem percorre a exposição caminha com o fotógrafo pelo museu, sempre com a sensação de que olha as obras de arte espreitando por cima do ombro das pessoas que cabem na Leica de Alécio de Andrade. E encontra casais de várias idades, mulheres a quem o cansaço obriga a descalçar os sapatos, crianças exaustas nos colos dos pais e nos bancos das galerias, dois rapazes que parecem ter trocado uma partida de ténis pela Dama do Arminho, de Leonardo da Vinci. É o dia-a-dia de um museu, com pessoas surpresas, aborrecidas ou curiosas que se encontram com a arte e os artistas e deles se apropriam à sua maneira.

Talvez duas das imagens mais deliciosas da exposição sejam a das três freiras que, de mãos dadas, admiram As Três Graças, de Jean-Baptiste Regnault, e a dos filhos do fotógrafo, Balthazar e Florêncio, rendidos aos encantos da odalisca de Ingres.

“O seu olhar é sempre delicado”, diz Patricia, para quem o mais comovente das fotografias do marido é “sua sensibilidade subtil, sua ternura subtil, seu humor subtil”. Conheceram-se em Paris no Outono de 1982. Foi o escritor argentino Julio Cortázar, um amigo comum, que os apresentou. “Apaixonámo-nos em 1983 (Alécio nasceu em 1938); nosso primeiro filho escolheu o ninho em 1984 (nasci em 1948). Encontrei estas datas entre as anotações de Alécio quando ele morreu.”

Fotógrafo, mas também músico e poeta, Alécio de Andrade foi o primeiro brasileiro na prestigiada agência Magnum (entre 1970 e 1976) e colaborou com a Elle, a Newsweek, a American Photographer e a Nouvel Observateur. Os amigos elogiavam-lhe a sensibilidade, a cultura, a lealdade e uma inquietude permanente.

“A fotografia é como a poesia”, escreveu. “Algo lhe é proporcionado. Uma certa coisa passa, na ordem do efémero. É preciso estar em sincronia. Existem coisas, fotografias, que não tenho a impressão de ter feito.” Bach, Haydn e Schubert passavam muitas vezes pelo piano que tocava todos os dias. Precisava da música e da poesia, e era capaz de se sentar uma tarde inteira num bistrot só “olhando”. Carlos Drummond de Andrade, poeta que admirava muitíssimo, deixou um texto sobre o dom de Alécio de Andrade: “Olha, descobre este segredo: uma coisa são duas — ela mesma e sua imagem. (…) A imagem é um ser vivo, como os demais seres. E quer penetrar em teu espírito, habitá-lo como hóspede afectuoso. (…) Não pode haver melhor uso da fotografia do que este de alimentar-nos da porção perdida de nossa alma.” Alécio sabia disso.





Alécio de Andrade, da série Le Louvre et et ses Visiteurs

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