© Valter Vinagre
Quanto mais exposições vejo em antigos espaços industriais semi-abandonados mais tenho a certeza que não há melhor lugar para mostrar fotografia. A Antigua Fábrica de Tabacos de Madrid é só mais um exemplo recente da reconversão de um colosso edificado em lenta podridão num local vivo, prenhe de ideias e manifestações criativas. Desde o início do mês uma exposição duplamente colectiva aborda questões relacionadas com o meio ambiente, no ano em que se celebra a biodiversidade. E.C0 2010 reúne imagens de vinte colectivos de fotógrafos da Europa e da América do Sul. A [kameraphoto] é a representante portuguesa. Antes da partida para Madrid, conversei com Valter Vinagre sobre o ensaio escolhido que aborda o fascínio pelos animais embalsamados:
Qual era o desafio de partida?
Era fotografar algum tema relacionado com biodiversidade em Portugal. Foram convidados colectivos de vários países da Europa e da América do Sul.
Esta actividade da taxidermia está em extinção? Foi fácil encontrar pessoas que se dedicassem a ela?
Não. A maioria já tem muita idade. Encontrei uma pessoa que ainda faz e tem 80 e tal anos. Está sempre a criticar o pessoal que se metia a fazer esse trabalho sem saber muito bem o que estava a fazer.
Como é que te lembraste desta “fauna” que ainda sobrevive em muitas casas portuguesas?
Nunca tenho bem a noção de quando é que a ideia para um trabalho mais alargado surge. Durante a realização deste projecto tentei recordar-me do momento em que o assunto se atravessou à minha frente e me fez pensar, mas não consegui isolá-lo. O tema da morte, dos “cães danados”, de uma certa noção de ruína tem-me acompanhado… Quis registar a teimosia humana, a necessidade que temos de tentar perpetuar memórias, neste caso memórias naturais em extinção.
Quando nos chegou este desafio e se começou a discutir, na [kameraphoto], o que é que se ia fazer, lembrei-me logo dos animais embalsamados que muitas vezes aparecem expostos nos cafés. E fui, também, à procura deles em espaços mais privados. Para o conjunto de 12 imagens que apresento acabei por seleccionar apenas uma captada em cafés. As restantes foram tiradas em espaços privados.
Não deixa de ser interessante reconhecer que o conjunto pode ser lido também como a antítese da biodiversidade, se entendermos o termo na sua noção mais restrita, ou seja, como o conjunto de todas as espécies e seres vivos nos seus ecossistemas…
Agrada-me esse contra-pé com o tema proposto. Há também alguma ironia no título da série, animais de estimação, tendo em conta que estes animais eram selvagens e acabam por ser domesticados depois de mortos, tornaram-se queridos das pessoas e como tal foram embalsamados e não destruídos. Em alguns casos, eram animais domésticos cujos donos os quiseram perpetuar desta forma.
Outra coisa extraordinária é que esta actividade pode ajudar a limitar ainda mais a biodiversidade, tendo em conta a procura de animais exóticos e raros para embalsamar…
Sim, é verdade. Mas há um dado curioso: esta actividade tornou-se cada vez mais rara por causa de uma lei que a enquadrava e que levantou o boato de que era proibido ter em casa animais embalsamados em perigo de extinção, o que fez com que muita gente deitasse fora esses animais e que a actividade acabasse também por sofrer… Ironicamente, isto significa que alguns animais embalsamados podem ser duplamente raros. Há poucos embalsamamentos bem executados. E a maior parte dos que existem estão nos museus.
Há também uma mensagem que é: atenção porque qualquer dia para ver uma determinada espécie só desta maneira.
Sim. Há um lado do trabalho que pode funcionar como alerta.
E a abordagem? Todo este universo à volta da taxidermia é um pouco kitsch…
Muito. Para além de mostrar os animais, quis dar um pouco do universo que os rodeia. Interessa-me muito a memória dos lugares, os ambientes em que as coisas aparecem e se constroem.
O conjunto dá um ambiente assustador, a fazer lembrar filmes de classe Z. Apesar de “domesticados” estes animais têm um ar tenebroso, agressivo. O flash sublinha esse aspecto e parece que os apanhaste em flagrante no seu meio natural…
É uma maneira de sublinhar ainda mais a ilusão de vida que se pretende criar com o embalsamamento. Por outro lado, ao dar parte do cenário onde estão arrumados, remeto para o seu lado doméstico e… definitivamente domesticado. São usados como bibelots.
E por que é que o colectivo decidiu apresentar o trabalho de uma pessoa?
Achamos que era a maneira de apresentar um trabalho mais homogéneo, em vez de estar a juntar uma ou duas imagens de várias pessoas para um total que não ultrapassará as 15 fotografias. Com o devido respeito, quisemos fugir um pouco ao estilo national geographic. Até porque nenhum de nós trabalha a natureza de uma forma recorrente a partir de um ponto de vista tão estreito e académico.
E conheciam as abordagens dos outros colectivos?
Antes de começar a trabalhar nestas imagens, não.
Queres continuar a fotografar este universo?
Sim, interessa-me muito. Para já, quero continuar a fotografar na região da Beira-Baixa. E depois ir pelo país.
O tema é biodiversidade, mas este trabalho é mais sobre a morte do que sobre a vida…
É mais sobre a morte, nitidamente. Não quis ir pelo lado do troféu de caça, mas mais pelo apego que as pessoas demonstraram ter por estes objectos que antes de serem bibelots foram animais vivos.
Valter Vinagre, da série Animais de Estimação
© Valter Vinagre
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