12 julho, 2006

Ficámos assim

"Tenho-a para lá, dentro de um caixote. Penso que ainda a tenho. A fotografia. Um nadinha rasgada num dos cantos, foi a tentar tirá-la de um álbum para mudar para outro. Os meus pais sorriem, as minhas irmãs são pequenas, a Matilde ainda mal anda, a Joana deitada numa manta, de fraldas. Estamos todos. De um dos lados vê-se a limpidez do rio, do outro nós todos sobre a relva fresca. mantas pelo chão, dois cestos de piquenique, a minha mãe de joelhos, retiraria com cuidado as compotas, as laranjadas e o pão, o meu pai deitado, apoiado num cotovelo, a olhar para mim. Estamos todos. A dar sombra à cena, uma árvore enorme, junto à qual me encontro, molhada, de pé, os cabelos escorridos para trás. Estava um calor de morrer, estou nua. Sou a única que olha para a câmara, foi a minha tia Rosa que tirou a foto. De forma que os meus pais olham para mim e só eu olho para quem possa olhar para a foto. Tenho-a guardada, hei-de ir vê-la. Estou nua. E, no entanto, nenhum medo me assalta. Nenhum pânico. Estou até, quero crer, mais segura que nunca. Nua, com oito ou nove anos, a morder uma colossal fatia de melancia, uma meia-lua vermelha e verde. Olho a câmara com segurança. Os sorrisos do meu pai e da minha mãe, nem dei por eles na altura. Não dei por eles muitos anos. Dou por eles agora, que lembro a fotografia, que sei que tenho de ir resgatá-la ao caixote, arranjar-lhe o canto com fita-cola. Os meus pais olham a sua menina. E não conseguem conter o sorriso, numa tarde de Verão, sobre a relva fofa, sob a sombra da árvore e o cheiro do pão, com o rio ali ao lado, translúcido. A sua menina, perfeita, que acabou de se refrescar com um mergulho e devora a melancia. A menina saudável, confiante, sem medo de se deixar estar nua, olhando de frente a câmara. Quero esta fotografia, quero-me assim, saber que fui assim. Quero este momento, o único em que me vi nua sem necessidade de me esconder, com a relva a fazer-me cócegas nos pés, eu pequena, segura, perfeita. Vejo. Com toda a nitidez, a minha tia sem me pedir Não te mexas Não te mexas agora, o meu pai a sorrir para mim, a minha mãe a barrar marmelada, a minha irmã a cair nos primeiros passos trôpegos de bebé. Vejo um carreiro de formigas no sopé da árvore grande, as pedras na margem do rio. Ouço. O clique da máquina fotográfica, a minha tia a dizer Ficou linda. Ouço a gargalhada pequenina da minha irmã, um bando de pássaros que esvoaça, a minha mãe a dizer Está pronto vamos almoçar. Sinto. A melancia na boca, feita de água fresca e pevides. O calor. As cócegas nos pés, os primeiros arrepios, o corpo a pedir uma toalha. Ficámos assim, numa fotografia que ainda tenho para lá, num caixote. A única em que estou nua, inteira, ainda que ninguém me tenha ordenado"

Rodrigo Guedes de Carvalho, A Casa Quieta, D. Quixote, 2005, (págs. 31, 32, 33)

(manipulação gráfica: artephotographica)

1 comentário:

Anónimo disse...

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