Pedro Moura
O encontro interdisciplinar entre a banda desenhada e a fotografia não é de forma alguma uma experiência nova, remetendo mesmo às primeiras transformações internas tecnologicamente determinadas de ambas as artes, como estudado por Thierry Smolderen. Todavia, para que surja uma nova convergência é necessária que tenha sido lavrada na mente dos leitores-espectadores uma separação aparentemente intransponível, ou pelo menos ontologicamente sólida, a chamada “especificidade dos meios”, em vez de se considerar um “contínuo pictural”, na frase de Diarmuid Costello.
Mesmo que não se desejem quaisquer consensos indiscutíveis, que se tornassem axiomáticos, há uma compreensão primeira que remeterá as imagens fotográficas para um campo mecânico, uma “transferência do real” (Rosalind Krauss), e as imagens desenhadas como sendo “eminentemente auto-reflexivas e auto-referenciais” (Philippe Marion). Contemporaneamente, a prática dessa nova convergência é de tal modo intensa – através de remediações, hipermediações, traduções, elaboração de figuração ou estruturações análogas, contaminações, etc. - que será possível desde logo encontrar uma tipologia desse encontro variegada. Os termos de representação previstos entre um e outro meio poderão ser vistos tanto como complementares como opostos, ora por razões técnicas ora por razões ontológicas e mesmo estéticas. A crença numa genuinidade representacional nos elementos extra-pictóricos da fotografia e a sua circunstância “histórica”, por oposição à constructabilidade do desenho, cria logo à partida formas de colocar as questões incompatíveis e, muito provavelmente, erróneas. Afinal de contas, uma fotografia é desde logo sempre uma construção ela-mesma, informada pela técnica e pela ideologia, ao passo que a banda desenhada, enquanto linguagem estruturada com as suas próprias especificidades expressivas, consegue aceder igualmente a formas de autenticidade.
Photobooth: A Biography é uma pesquisa paciente sobre a história de uma tecnologia específica, mas articula-se através de uma mescla coesa de várias linhas de inquirição. A um só tempo, a autora, Meags Fitzgerald, está a agregar vários géneros num só projecto. Tal qual o título indica, Photobooth é uma biografia, no seu pleno sentido etimológico, de “vida”. Porém, se o objecto dessa vida é na verdade uma tecnologia - as máquinas automáticas e baratas de fotografia (e revelação das mesmas) -, não há menos vida a discorrer nela, já que é uma linha que se vai encetar com as dos seus inventores, inovadores, cultores, assim como, mais importantemente, com a da autora destas páginas, que encontra em vários passos da sua própria biografia pontos de entrada. A autora não se limita porém a uma concatenação de curtos episódios relativos à sua vida ou a observações e impressões mundanas, próprias e alheias, mas executa uma longa e aturada demanda, que implica igualmente viagens pela Europa e Austrália, além dos Estados Unidos e Canadá, sobre os photomatons. Existindo alguns livros dedicados a esse capítulo da fotografia – a discussão da sua menoridade artística não pode ser aqui perseguida, mas a sua menção deve alertar para um desequilíbrio da atenção crítica no interior da disciplina da fotografia, que replica princípios de hierarquização advindos das disciplinas mais velhas e mais “nobres” da arte; um outro sub-campo da fotografia sub-explorado (ambos “sub” reflectem-se), e ainda mais aparentado com a banda desenhada, é o da fotonovela, recentemente estudada por Jan Baetens -, essa pesquisa leva-a também a aprender a mexer na “parte de trás” destas máquinas, da manipulação dos químicos a aspectos da sua instalação. As entrevistas, ainda que não sejam do mesmo modo “directo” do que no trabalho de banda desenhada jornalística de Joe Sacco ou Philippe Squarzoni, por exemplo, também criam uma camada importante de informação e criação de textura do livro. E as pessoas entrevistas vão desde coleccionadores a artistas, fãs e técnicos, criando o mais multifacetado retrato possível deste objecto. Uma hipótese de tradução deste livro é tratar-se de “biografias”, sendo a da própria tecnologia dos photomatons apenas o elemento de início de movimento e catártico.
Em muitos aspectos, e para alguns leitores, a descrição de banda desenhada poderá ser algo lateral, já que a autora não cria propriamente sequências de acção e alguns dos instrumentos mais expectáveis e normativos dessa linguagem não estão presentes, ou pelo menos não são usados sistematicamente (sobretudo toda aquela panóplia de metáforas visuais que conotam movimento, dinamismo, mutações, transição temporal, etc.). As páginas obedecem às mais variadas técnicas de composição, por vezes isolando os modelos das máquinas, outras concentrando blocos de texto coesos com algumas ilustrações, noutros casos “traduzindo” as fotografias produzidas pelos photomatons, quer da própria Fitzgerald, quer de amigos, quer dos entrevistados, quer ainda de referências artísticas que tenham trabalhado com este meio. São até poucos os casos de organizações de “acções” narrativas: há antes uma escolha pela criação de faixas complementares e objectivas, talvez se possa dizer, de informação. Há como que uma maior preocupação na mostração e menos no lavrar das operações retóricas permitidas, ou mesmo exigidas, por este particular meio de expressão. Em termos crono-estruturais, porém, se existem uma ou duas linhas cronológicas – a história da tecnologia, a história da autora, a história da sua pesquisa -, elas são misturadas, voltam atrás, mesclam-se, na perseguição daquela ideia de complementaridade por adição. O que reforça, então, a pesquisa da autora por um modo consequentemente argumentativo. Até certo ponto, poder-se-á chamar este livro como sendo de tese, se bem que a um só tempo celebratório, de um momento já passado, e nostálgico, de um prazer preservado.
Para Fitzgerald, os photomatons parecem ser aquilo que Sherry Turkle chama de “objectos evocativos”, os quais não são apenas “centros de uma vida emocional”, mas formas de ancorar na vida diária, quotidiana, uma fonte de prazer filosófico, uma vez que através deles se moldam os pensamentos do indivíduo, aliados a sensações. É certo que isso poderá aproximar tal atitude, de uma perspectiva, de um mero fetichismo materialista, mas com Walter Benjamin poder-se-ia corrigir essa rota, e aproximar estes objectos a uma espécie de âncora sólida, de centro, num mundo em constante aceleração e mutação. Os coleccionadores – e até certo ponto poderemos chamar Fitzgerald de uma coleccionadora, não apenas das fotografias em si mas dos modelos dos photomatons capturados de várias maneiras, com fotografias, os desenhos que nos são mostrados, outros elementos informativos – encontram os seus objectos de eleição uma plataforma de auto-criação, de solidez, e de união entre eles e si mesmos. Até certo ponto, haverá pontos em comum com os “objectos transaccionais” de Winnicott, onde o peso de desenvolvimento pessoal se encontra num objecto externo. Se as palavras “obsessão”, “mania” ou “pancada” poderão fazer sentido nesta incessante busca da autora, todas essas palavras devem surgir no seu sentido mais banal e inócuo.
Daí que a história sobre a tecnologia em si seja pontuada por pequenas anedotas da vida das pessoas que contribuíram para a sua existência e desenvolvimento, assim como os pontos de contacto entre a autora e os photomatons, e em que medida é que esses contactos mudaram o trajecto dela, não apenas artístico, mas pessoal, e cujo corolário é, evidentemente, este longo discurso: o livro que temos nas mãos. A autora canadiana, cuja educação artística a fez atravessar o teatro improvisado, a fotografia, o desenho e, agora, a banda desenhada, foca sobretudo nas máquinas químicas completas, que em Portugal chamamos ainda com o nome original, Photomaton, tal qual baptizada pelo seu inventor, Anatol Josephewitz, em 1925. Apesar de falar rapidamente das máquinas adaptadas às tecnologias digitais, que são empregues hoje em dia um pouco por todo o lado (a União Europeia, por exemplo, proíbe um dos químicos originais, logo elas não existem mais em espaços públicos), Fitzgerald está a focalizar sobretudo um estádio muito preciso em termos tecnológicos, apesar de estudar e discorrer sobre as suas origens – desde a invenção da própria fotografia – e os seus sucessivos desenvolvimentos – químicos, arquitectónicos, de design, de uso social e de impacto cultural.
O photomaton em si é uma plataforma de expressão fotográfica que parece hoje algo diluída com a ubiquidade e acessibilidade quase absoluta (pelo menos nas esferas burguesas do “Primeiro Mundo”) das câmaras fotográficas digitais, mas sobretudo aquelas embutidas nos telemóveis, que transformou o acto do auto-retrato, tal qual concebido no quadro do photomaton - ora uma necessidade burocrática ora um momento de divertimento -, num passatempo incessante, alimentando a máquina voraz e impaciente das redes sociais da internet. Este livro não procura uma dimensão mais profunda de ensaísmo que procure entender os usos e recepção dessas tecnologias. Numa entrevista, Fitzgerald contrapõe a “tecnologia digital dos nossos dias” à “natureza íntima, táctil e singular das photomatons antigas”, o que nos parece, até certo ponto, uma simplificação de ambas as plataformas a que recebe. Poder-se-ia inverter a equação, olhando para os produtos do photomaton como uma imposição externa de formatos burocratizados, ao passo que a atomização da fotografia digital a transforma em algo que ultrapassa a fotografia e penetra numa esfera que já não pode ser entendida como externa à própria condição humana (o que deve ser uma fonte de preocupações profundas, necessariamente).
Há, porém, uma questão central, que poderá assaltar os leitores ou desde o primeiro passo, ou apenas em retrospectiva, ou ainda durante uma das quaisquer inflexões ao longo do discurso. E que tem a ver precisamente com a relação que a representação fotográfica terá na economia desta narrativa. É o facto de não existir uma única fotografia. Todas elas – as da autora, as de outras pessoas, as dos catálogos artísticos, sejam elas de photomaton ou de outras origens – são transformadas em imagens desenhadas, como se atravessassem uma “tradução” que as integrasse plena e igualitariamente em toda a ontologia da matéria visual da banda desenhada.
Um dos aspectos que nos desequilibra na relação imediata entre a autora e as fotografias que foi fazendo ao longo da vida com e nos photomatons, assim como com toda a produção de outras pessoas – artistas de maior ou menor renome, cultores técnicos, modelos das marcas ou simplesmente utilizadores – é que essa relação de tradução dos meios não é discutida explicitamente. Isto é, quando uma fotografia tem uma existência tangível e passa a tornar-se um elemento passível de integrar a textualidade de uma banda desenhada, poder-se-iam pensar várias soluções. Projectos como Le photographe, de Emmanuel Guibert, Didier Lefèvre et al., que constroem um verdadeiro diálogo entre a produção fotográfica e o “mel da narração” permitido pela banda desenhada, ou Afrique de papa, de Hiyppolyte, que desdobram o olhar do autor conforme ele tenha empregue a fotografia ou a banda desenhada, ou de um autor como Jean Teulé, estabelecem plataformas que querem estudar em que medida as ontologias diversas de ambos os meios podem partilhar um mesmo espaço ou direcção expressiva.
Desviando-nos para o território do cinema de animação, remeteríamos os leitores para algumas considerações tecidas por nós em torno dos filmes de Ari Folman, quer o semi-autobiográfico Valsa com Bashir e o ficcional/adaptação literária O congresso, para encontrar um outro paradoxal discurso em torno da distribuição entre a ideia de “imagem real versus imagem desenhada” e as esferas da “verdade versus ilusão”. Em Photomaton: A Biography, procurará Fitzgerald subsumir tudo a uma só esfera ontológica, procurará a autora suavizar aquilo que é, na experiência real, variado e texturado?
Autobiografias como Maus, de art spiegelman, ou Fun Home, de Alison Bechdel, por outro lado, encontram numa série de fotografias o “coração oculto” das suas pesquisas e relacionamentos intergeracionais (no primeiro caso, tendo levado mesmo uma investigadora como Marianne Hirsch a fundar o conceito de “pós-memória”), mas respondem de modos drasticamente diferentes. spiegelman enquadra as fotografias tal qual as encontra na textura do seu trabalho, criando como que momentos de desvio, espessura e tactilidade. Bechdel, ao “traduzir” as fotografias com o seu minucioso trabalho de tramas, procura antes englobá-las como parte de si. Neste sentido, encontramos duas formas psicológicas bem distintas: spiegelman repetindo o trauma, Bechdel trabalhando-o.
Fitzgerald, por seu lado, não está a tratar de um tema tão gravoso como um trauma, se bem que o percurso tentado em Photobooth possa ser visto como um retrato de profundas transformações sociais e, até certo ponto, pessoais. E a sua opção em fazer representar tudo pelo desenho, inclusive as fotografias (delas ou de outros), poderá ser visto como uma tentativa de tornar seu, não apenas sua linguagem mas extensão do seu corpo, toda essa experiência. Nancy Pedri (editora do volume 16.2 de Image & Narrative exclusivamente dedicado à presença da fotografia na banda desenhada) discutiria estas imagens como tendo menos uma função referencial, documental, do que narrativa, procurando delir a fronteira entre “o documental e o estético”. Contudo, estamos em crer que Fitzgerald procura cumprir uma linguagem “objectiva” (no sentido de mostração, aventado acima, minimizando a expressão como pode – o que, numa narrativa desenhada é impossível de cumprir), que criará pelo menos a ilusão dessa mesma referencialidade, reflectindo essa outra ilusão, mecânica, limitada, das fotografias de photomaton que tanto aprecia.
A autora revela como durante algum tempo esta sua obsessão e busca era feita de um modo isolado, e até mesmo na ilusão de que se tratava de uma espécie de fetichismo quase único. No entanto, vários encontros felizes, sobretudo com a descoberta do site Photobooth.net, abriu-lhe os horizontes para toda uma comunidade, internacional, intergeracional e multidisciplinar, e um mundo cada vez mais alargado de referências relativas a este objecto. A presença do desenho, de modo quase indiferenciado, subsume tudo, portanto, a um corpo unificado e coerente, mas é possível que a relação de interpretação entre o representativo e o numénico não fiquem totalmente esclarecidos.
Passível de ser lido como um texto que satisfaça alguma curiosidade histórica e social sobre os photomatons, ou enquanto manifesto de uma vontade individual em procurar compreender uma obsessão que serviu para a delineação psicológica da artista, ou até mesmo como um exemplo de transformação social do meio da banda desenhada enquanto linguagem ampla para a mais díspares discursividades, Photomaton é um livro que nos convida a entrar nele e, ao procurarmos algo que nos olhe de fora, nos diga algo de dentro.
Três perguntas a Meags Fitzgerald
1. O que a fez optar por esta estrutura narrativa, que oscila pela história do photomaton, ao mesmo tempo que explora a sua própria biografia sob o signo deste meio e os resultados da sua pesquisa?
A razão pela qual teço a minha história pessoal com a história [do photomaton] deve-se ao facto de que não queria que o leitor se aborrecesse com apenas uma delas. Fascina-me completamente a história e os componentes técnicos dos photomatons, mas eu sei que nem todas as pessoas partilharão desse interesse, por isso ao contar a minha própria história ao mesmo tempo, estava com a esperança que ao dar algo de pessoal aos leitores eles poderiam sentir alguma ligação ao livro.
2. Em muitos aspectos, o seu livro tem um tom muito benjaminiano, no sentido em que a Meags Fitzgerald não apenas está a tratar de um objecto tecnológico, mas toda uma história cultural que está na precisa curva do seu desaparecimento. Poderemos considerar Photobooth. A Biography uma tentativa de salvamento e redenção deste objecto e meio em particular, ou tratar-se-á apenas de um canto do cisne de algo que tombará inevitavelmente na História?
É demasiado tarde para conseguir atingir transformações que salvassem os photomatons químicos do seu desaparecimento, ainda que gostaria que o livro pudesse ser visto como um apelo à acção. Senti, à medida que viajava e pesquisava, uma sensação de urgência, e gostava que o leitor também o partilhasse. Mas o livro acaba por servir sobretudo como uma elegia aos photomatons químicos. Não conseguirei impedir que eles desapareçam, mas pelo menos gostava que as pessoas soubessem o quão importantes foram.
3. Em último lugar, gostava de lhe perguntar porque é que, num livro dedicado a um meio fotográfico, optou por representar tudo, inclusive as próprias fotografias reais, pelo desenho? Muitos artistas “traduzem” meticulosamente fotografias em desenhos (a Alison Bechdel surge-me como um exemplo máximo), enquanto outros escolhem por integrá-las, tal qual, nas suas narrativas desenhadas (penso em Maus). Qual é a sua perspectiva neste assunto?
Há duas razões para isso, uma conceptual e a outra prática. Escolhi desenhar todas as fotografias do livro, em parte, porque as duas disciplinas têm tido uma relação tensa desde que a fotografia foi inventada. Muitos pintores trabalharam como retratistas até a fotografia aparecer e ser capaz de capturar as pessoas mais rapidamente e por menos dinheiro. Ao desenhar fotografias, senti que estava a subverter esse processo e a reinstituir a importância da interpretação de um artista. A segunda e maior razão deve-se ao facto de não me sentir totalmente confortável a imprimir retratos de outras pessoas sem obter permissão para isso, mesmo que essas pessoas pudessem (como é o caso das fotografias antigas) já ter morrido. Também penso que seria algo estranho ter alguma documentação ilustrada e reproduções de documentação, por exemplo quando incluo anúncios antigos ou recortes de jornal. O desenho era de facto a única opção porque na maior parte dos casos nem sequer tinha imagens com qualidade suficiente para serem impressas, depois de pesquisas que fiz online. Ao desenhar tudo, mantive as coisas de modo uniforme.