05 janeiro, 2015

o império aos bocados


Autoretrato do fotógrafo Elmano Cunha e Costa com o padre Estermann, Moxico, Angola, 1935-1939
© Arquivo Histórico Ultramarino

As fotografias são objectos difíceis e as dos impérios coloniais ainda mais
Lucinda Canelas
(Público, 13.12.2014)

Fotografias soltas numa caixa de cartão. Há de casamentos, baptizados, trabalhadores no campo, desfiles de minhotas trajadas a preceito e muitos retratos de crianças com dedicatórias, daqueles que era costume enviar a tios e avós na altura das festas. Na banca seguinte são os álbuns de guerra que guardam as imagens de um império que começava a deixar de o ser de forma irreversível. Num e noutro caso é de pessoas desconhecidas que se trata. Num e noutro caso é de memória que falamos, de um património visual de onde se pode partir para reescrever histórias privadas que fazem parte de uma narrativa partilhada.

Filipa Lowndes Vicente já percorreu muitas vezes a Feira da Ladra atrás de fotografias como estas, mas também já passou horas, dias, em arquivos, bibliotecas e museus à procura do tipo de imagens que hoje podemos encontrar na obra que coordenou e que acaba de ser publicada pelas Edições 70, O Império da Visão. Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1960).

O ambicioso volume de 500 páginas, com 28 artigos de temas muito diversos organizados em quatro grandes capítulos, conta com historiadores, antropólogos e biólogos entre os seus autores e é a primeira história da fotografia do império com metrópole em Lisboa e que, como explica James R. Ryan na introdução, tinha das mais longas relações de uma potência europeia com África, baseada primeiro no tráfico de escravos e, mais tarde, num sistema de trabalhos forçados que alimentava a desigualdade e a injustiça e que se manteve até 1961.

“As fotografias são preciosas para os historiadores do império tanto pelo que escondem como pelo que revelam”, escreve este historiador, autor de livros como Picturing Empire: Photography and the Visualization of the British Empire. Como? Mostram, por exemplo, uma economia colonial em crescimento através de imagens das grandes plantações da África ocidental ou dos caminhos de ferro, mas apagam o trabalho escravo que a tornou possível.

O Império da Visão, explica Filipa Vicente, é uma primeira tentativa de reunir uma série de contributos numa área de investigação que, embora tivesse já produzido conhecimento, não estava ainda consolidada: “Não há em Portugal uma genealogia, uma historiografia da fotografia no império. Há, sim, estudos fragmentados. Na Grã-Bretanha este trabalho de olhar para a fotografia como instrumento de poder e de colonização começou a ser feito no início da década de 1990.”

E começou a ser feito, como em Portugal, pelos antropólogos, mais habituados a problematizar a imagem do que os historiadores que, cruzando-se com ela entre os múltiplos materiais das suas investigações, tendem a tratá-la mais como uma ilustração do que como um documento em nome próprio, admite esta investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa: “Os antropólogos têm mais capacidade crítica quando pegam numa fotografia. As imagens são objectos difíceis, complicados. E nós, os historiadores, estamos pouco preparados para lidar com essa complexidade.”

Alguns dos autores que aqui escrevem sobre fotografia fazem-no pela primeira vez para este volume que acaba precisamente antes do começo da guerra colonial - há artigos que reflectem sobre realidades posteriores como o de Afonso Ramos (“Angola 1961, o horror das imagens”, sobre as fotografias atribuídas aos massacres da UPA no Norte e todas as questões, éticas ou de autenticidade, que levantam) e de Susana Martins/António Pinto Ribeiro (“A fotografia artística contemporânea como identidade pós-colonial”), mas são residuais. O trabalho que conduziu ao livro foi feito em apenas dois anos – deu origem a um colóquio, cursos, ciclos de cinema e a um portal que reúne informação sobre a área (www.fotografiacolonial.ics.ulisboa.pt) - e esse curto período de tempo explica algumas das opções de Vicente e justifica ausências.

“Era impossível pegar em tudo em tão pouco tempo. O critério não é cronológico nem geográfico – o livro anda para trás e para a frente no tempo e não inclui Macau e Timor. Era preciso escolher o que ficava de fora.” De fora ficaram, por exemplo, os investigadores e arquivos das antigas colónias portuguesas (na base da investigação estão, sobretudo, os espólios da Sociedade de Geografia, do Arquivo Histórico Ultramarino, do Centro de Estudos Geográficos, da Torre do Tombo, do Museu Nacional de Etnologia e do Centro Português de Fotografia); um olhar mais atento sobre as mulheres, quer as dos território colonizados, quer as que acompanhavam os antropólogos, geógrafos e outros cientistas nas suas expedições; a arquitectura; e os arquivos privados, que “requerem um trabalho urgente” e que apontam para o uso da fotografia na intimidade, com “um lado emocional fortíssimo”, como forma de saudade, de nostalgia.

“Os artigos vieram ter comigo, por assim dizer, e daí, talvez, a falta de um fio condutor evidente que não seja o próprio império português neste período. Excluir estes aspectos não foi intencional, muito pelo contrário. Todos eles são possíveis para futuras investigações, mas era preciso optar”, argumenta Filipa Vicente, que tem dedicado boa parte do seu tempo ao estudo da fotografia em Goa enquanto instrumento de construção de identidades entre as elites locais e que sempre se interessou pela questão das mulheres que fizeram parte das grandes missões em África mas que não têm, diz, nem de perto nem de longe, o reconhecimento que merecem.

“Você prime o botão…”
Inicialmente a fotografia respondeu à necessidade de fazer um registo objectivo de pessoas e lugares espalhados pelo mundo e, associada a outros meios, como relatórios e jornais, passou a servir de instrumento de controlo de vastos territórios para as grandes potências coloniais. Fotografar era dominar. E isto tornou-se ainda mais verdadeiro com a “democratização” do próprio acto de fotografar.

Em meados do século XIX, quando surgiu a fotografia – no final da década de 1830, ao mesmo tempo em França e na Grã-Bretanha, ambas grandes potências coloniais europeias, lembra James R. Ryan – fotografar requeria toda uma parafernália de instrumentos que tornava esta actividade tecnologicamente complexa e cara. Esta situação alterou-se radicalmente em 1888, com o surgimento da revolucionária Kodak, com o célebre slogan “você prime o botão, nós fazemos o resto”. De repente, lembra o historiador britânico, fotografar era fácil e as câmaras passaram a viajar na mala de altos funcionários destacados para os territórios, de médicos, cientistas, soldados e missionários. E havia até fotógrafos profissionais a fazer carreira em Angola, como J. A. da Cunha Moraes, com bastante sucesso comercial. “Moraes via a sua câmara como um instrumento de conquista e as suas fotografias como registos objectivos da topografia, geografia e antropologia, a ser usados na cartografia e levantamento de territórios coloniais futuros”, precisa Ryan.

A popularização da fotografia, que fez com que, em apenas dez anos, ela se tornasse prática doméstica corrente nos territórios ultramarinos, coincidiu com um impressionante período de expansão europeia. Ela era, ao mesmo tempo, instrumento de hegemonia e de validação das “rotinas e rituais que estruturavam a sociedade colonial”, escreve o historiador britânico, defendendo que não se pode olhar para estas imagens pensando apenas no seu objectivo de servir os regimes colonizadores.

É certo que “a fotografia foi crucial para o exercício e manutenção do domínio colonial”, já que “não reflectia tanto as realidades da vida e paisagem colonial, antes construí-as”, mas isto não significa, sublinha James R. Ryan, que tenha sido sempre ou em exclusivo uma arma de poder colonial e de repressão, como foi sugerido pelos primeiros estudos sobre a matéria. Em anos recentes, adverte, os investigadores têm apontado para “uma relação mais complexa e ambígua entre a fotografia e o império”. Tudo porque, por exemplo, as fotografias feitas para órgãos da administração colonial podiam servir a propaganda oficial mas, ao mesmo tempo, se entregues aos opositores ao império, prestavam-se a denunciar, às vezes com maior eficácia, as suas injustiças, desigualdades e atentados aos direitos humanos, particularmente em foco no artigo que o historiador Miguel Bandeira Jerónimo assina em O Império da Visão (“As provas da ‘civilização’: fotografia, colonialismo e direitos humanos”).

“Há muitas formas de pensar a fotografia, mas é preciso fazê-lo criticamente. Se não o fizermos há o perigo de as reduzir ao seu lado estético, o que é problemático, sobretudo quando estamos a falar de fotografias como estas, feitas num contexto de hegemonia, desigualdade e violência”, acrescenta Filipa Vicente.

É claro que há beleza nas paisagens fotografadas, nas mulheres e nos trajes tradicionais, mas há muito mais do que isso. A questão das mulheres, nota uma vez mais a historiadora, é particularmente interessante porque é também a partir do corpo feminino que se pode reflectir sobre as fronteiras difusas que a fotografia colonial tantas vezes desenha. “Há um grande exotismo na fotografia das mulheres negras cujo corpo, ao contrário do das mulheres brancas, pode ser exposto. Mas os limites entre o erótico e o etnográfico são confusos, mal definidos, e essa ambiguidade está lá desde o momento da produção da imagem.” Está lá a mostrar que a hegemonia colonial é também uma hegemonia patriarcal, como defende o antropólogo Carlos Barradas no seu artigo para este volume, “Descolonizando enunciados: a quem serve objectivamente a fotografia?”.

O desconforto
Se é verdade que a propaganda oficial compunha narrativas a partir de imagens que omitiam situações de profunda opressão dos povos colonizados, também é verdade que, do outro lado, a fotografia, muita dela ancorada em estúdios que se transformaram num negócio próspero, também servia para as elites locais se afirmarem socialmente. “Os retratos de estúdio ajudaram as novas elites urbanas africanas a criarem para si identidades novas e modernas, imitando, ludicamente, aparências ocidentais ou, posteriormente, em especial nos estúdios da África Ocidental, voltando a adoptar selectivamente trajes tradicionais ou tribais, de modo a afirmar uma noção de si mesmos que era independente do seu estatuto de súbditos coloniais”, escreve James R. Ryan. Em Goa, demonstra-o Vicente no seu artigo, esta instrumentalização também é notória (“Viagens entre a Índia e o arquivo: Goa em fotografias e exposições (1860-1930)”).

Quer tenha servido a criação e manutenção de um discurso hegemónico europeu, quer tenha contribuído para a preservação de uma hierarquia local, certo é que este património visual vem muitas vezes carregado de leituras que incomodam, diz esta investigadora do ICS, o que faz com que, conclui o historiador da fotografia britânico, curadores e directores de museus tenham dificuldade em pegar-lhes. São sempre muitas, escreve, as questões que se levantam quando se trata de representar visualmente um império aos olhos do visitante do século XXI: “Muito do registo fotográfico do império ainda permanece invisível, por causa da extrema incapacidade dos museus de integrarem passados nacionais coloniais nas suas próprias narrativas.”

Uma incapacidade que é preciso combater reflectindo, por exemplo, se faz ainda sentido falar de fotografia colonial como se tem feito até aqui. Para os britânicos, que começaram a trabalhar o tema há mais de 20 anos, o debate está já neste nível, explica Filipa Vicente, referindo o trabalho do historiador e antropólogo Christopher Pinney, que tem concentrado boa parte da sua investigação na Índia britânica. “Pinney defende que a democratização da fotografia nas colónias aconteceu sob diversas formas e serviu muitos propósitos, não apenas o do colonizador. Ele acredita que, chamar-lhe colonial só porque à data em que foi feita a Índia era uma colónia britânica, não faz sentido nenhum. Não sei se concordo com ele, mas acho que esta é uma reflexão que vale a pena.”

Uma reflexão que só pode ser feita se associarmos à fotografia outros documentos escritos que tornem evidente o seu contexto de produção e uso, e, sempre que possível, até alguns registos de oralidade. “A textura histórica dá densidade às imagens e torna-as mais importantes, mas quando se trata de álbuns de família anónimos, o que as pessoas têm para contar é muito importante. Quando compro na Feira da Ladra uma fotografia de um soldado na guerra colonial tenho na mão uma história perdida, mas se alguém me falar daquele soldado, ele deixa de ser um desconhecido – passa a ter um nome e uma memória, um passado."



Grandes cestos, Ganguelas, Angola, 1935-1939
Arquivo Histórico Ultramarino

Sem comentários:

 
free web page hit counter