Pieter Hugo, da série There´s a Place in Hell for Me and My Friends, cortesia Galeria Michael Stevenson |
O que é que andamos a fazer com o preto e branco?
Um festival de fotografia que em 2013 anuncia a celebração do preto e
branco corre o risco de ser logo confundido com a brigada do reumático dos
processos analógicos. Um cartaz que diz “Arles in Black” - que serve de
cartão-de-visita à edição deste ano dos Encontros de Fotografia de Arles, França - pode ser meio caminho
andado para uma leitura imediatista que pode ligar aquele que é um dos mais importantes
conclaves da fotografia no mundo à resistência à mudança ou à perpetuação dos
exercícios saudosistas, a chorar banha e ranho pelo que foi e não volta a ser. Ao
ancorar hoje o grosso da programação numa estética que marcou (e ainda marca?)
de forma tão profunda o labor fotográfico, Arles não quis fazer apenas uma
provocação – quis dar-nos um estado da arte deste universo para, através dele, mostrar
como ainda se podem fazer descobertas e revelações. E, sobretudo, tentar provar
como ainda fervilha a centelha criativa dos que escolhem exprimir-se através
das gradações de cinzentos.
A velocidade alucinante a que tem caminhado tudo o que diz respeito à
fotografia nos últimos anos tende a fazer-nos esquecer boa parte do que existia
antes. Ou a deixar cada vez menos espaço para o entendimento do percurso e da
história das múltiplas formas de expressão da imagem fotográfica. Mas se
pensarmos bem, não estão assim tão distantes as décadas em que o preto e branco
analógico dominava a fotografia como os dinossauros reinavam sobre a Terra, sem
criaturas que lhe pudessem fazer frente. Até que surgiu um primeiro tremor de
terra chamado cor. E depois outro chamado digital. Ora, sempre que abalos com
esta dimensão se fazem sentir importa ir percebendo pontualmente que brechas foram
abertas e que consequências deixaram.
Este festival (com mais de 50 exposições abertas até 22 de Setembro) pode
servir para perceber se o preto e branco (analógico ou não) é um dinossauro em
perigo de extinção, se é uma prática que entrou em estado de obsolescência, se
deixou de nos surpreender, de nos seduzir e abalar. Será também um momento
oportuno para tentar encontrar respostas não só para as perguntas lançadas
pelos Encontros (“Que lugar ocupa hoje o preto e branco?”; “Realismo ou ficção,
poesia, abstracção ou pura nostalgia?”) como para outras questões que podem ser
colocadas: será produtivo (possível) discutir a este nível qualquer estética ou
expressão fotográfica?; o preto e branco foi “a” fotografia durante muitas
décadas, resistiu a inúmeros embates – fará sentido falar no seu
desaparecimento puro e simples?
O actual director do festival François Hébel é um protagonista
privilegiado para nos conduzir por estas reflexões. Com uma ligação à
fotografia que remonta a 1979, quando começou a escrever para a revista Contact, publicada pela cadeia de lojas FNAC,
foi ele que organizou as primeiras exposições de fotografia a cores de grande
formato no Festival de Arles, em 1986, provocando um sentimento de rejeição no
seio do núcleo duro (muito conservador) dos encontros que acontecem todos os
anos desde 1970. Depois de mais de uma década como responsável máximo pela
cooperativa Magnum em Paris (um dos templos do preto e branco), em 2002 assumiu
de novo a liderança do festival, cargo que ocupa até hoje.
Agora, numa nova tentativa de fazer mexer as águas (mas agora ao
contrário), Hébel assume algum “radicalismo” (é a palavra mais repetida do seu
curto texto de apresentação dos Encontros) ao escolher um olhar sobre o preto e
branco, programa que pode ser entendido como “paradoxal” já que assenta num
“espírito de descoberta”. Descoberta? Sim, como se o preto e branco já fosse
coisa de um passado muito longínquo. E assim encontrar (reencontrar)
“verdadeiras pérolas”: como a retrospectiva (em estreia mundial) de um
fotógrafo tão secreto quanto genial como o chileno Sergio Larrain (1931-2012); alguns
dos primeiros trabalhos nunca mostrados em público do francês Guy Bourdin (1928-1991),
descobertos numa caixa de cartão e meticulosamente separados em envelopes pardos;
ou o olhar cirúrgico do britânico John Stezaker que com um laborioso corta e
cola sobre fotografias encontradas e objectos gráficos nos oferece novas
possibilidades para a leitura de todo o tipo de imagens.
Descoberta? Sim, ao revelar “criações inéditas de artistas consagrados”:
como as paisagens marítimas nocturnas (a roçar a abstracção) do japonês Hiroshi
Sugimoto (1948); ou um raro olhar a negro dos campos de lavanda da Provença e
das artes que lhes estão associadas pela lente do português Paulo Nozolino (1955).
Descoberta? Sim, ao recuperar “tesouros do passado”: como as
fotografias captadas com o intuito de integrar álbuns de família como as que
Jacques Henri Lartigue (1894-1986) tirou à sua primeira mulher, a mais do que
amada “Bibi”; ou as que Pierre Jamet (1910-2000) foi tirando no decorrer de
grandes caminhadas no momento em que as pousadas de juventude conheceram em
França uma grande dinâmica. Ainda no campo dos“tesouros”, daqueles que existem lá
em casa, há aquela que é uma das melhores exposições da edição deste ano, Album Beauty, pensada pelo holandês Erik
Kessels a partir da sua colecção, que nos transporta para dentro dos álbuns de
família vernaculares, numa reflexão perspicaz sobre a morte acelerada deste
universo fotográfico.
Maiorias, minorias
As excepções à “regra do preto e branco” dos Encontros de 2013 são mais
do que muitas e se por um lado servem para fazer um simples contraponto visual
à profusão de negros (como se as cores da Provença não fossem suficientes…) por
outro revelam-se uma opção acertada quando é preciso recentrar o olhar no que é
produção contemporânea dominante de modo a poder estabelecer relações (mais ou
menos próximas) ou distâncias (mais ou menos inultrapassáveis). No caso das
polaróides com estudos de cor (que também serviram para fazer caríssimos e
exclusivos lenços Hermès) das alvoradas de Tóquio captadas por Sugimoto é
possível perceber como o fotógrafo japonês explora o mesmo tema (a luz e as
suas variações no tempo) independentemente do formato, da forma ou do suporte
fotográfico utilizados. Ainda do lado das relações é interessante comparar os
primeiros passos na fotografia de moda de Guy Bourdin (ainda a preto e branco, que
a exposição Untouched também mostra)
com as actuais criações da holandesa Viviane Sassen (colaboradora habitual de
revistas alternativas como a Numero, Roxane ou Pop). Os dois revelam uma queda para as imagens desconcertantes a
tocar o surrealismo. Já o Novo Mundo,
a exposição apresentado por Wolfgang Tillmans (1968), desperta-nos para a
anarquia e para a embriaguez de imagens saturadas de marcas e cores que estão
muito longe do “romantismo” com que tendemos a olhar para as fotografias a preto
e branco. É uma exposição que funciona como uma picadela de agulha, capaz de
nos acordar do encantamento do canto das cigarras que por esta época enxameiam
Arles. E que provoca um estremecimento depois do doce embalar dos matizes cinza
que povoam a maioria das exposições do Parc des Ateliers, um enorme conjunto
industrial ferroviário para onde está projectada uma obra de Frank Gehry
dedicada ao estudo e à promoção da fotografia.
Fora do programa oficial mas mais do que dentro do espírito “a preto e
branco” que pauta estes Encontros importa destacar mais duas exposições
consagradas a dois mestres: Gordon Parks (1912-2006) e Daido Moriyama (1938). A
longa carreira dedicada à fotografia do primeiro (que entre outros afazeres foi
realizador de cinema, músico e escritor) é objecto de uma síntese que percorre
os vários géneros de uma obra pioneira e a vários títulos excepcional. Parks
foi o primeiro de muitas coisas na fotografia, no jornalismo e no cinema, mas o
que marca a sua obra (frontalmente engajada com a luta contra todas as formas
de discriminação a começar pelo racismo) é uma extraordinária sensibilidade
para captar momentos intensos, quer se trate do retrato de uma empregada de
limpeza (Ella Watson, na célebre American
Gothic, 1942) ou de uma estrela de cinema (Ingrid Bergman na ilha de
Stromboli, 1949). A exposição Une
Histoire Américaine (a primeira consagrada ao fotógrafo em França) traça um
percurso cronológico pela obra fotográfica do realizador de Shaft (1971), onde assumem especial protagonismo
as imagens dos líderes que lutaram pelos direitos da comunidade afro-americana
no pós-guerra, entre os quais Malcolm X e Martin Luther King. As fotografias de
moda, outra das grandes paixões de Parks que trabalhou para a Vogue vários anos, são outro dos pontos
altos de uma mostra que brilha também pelas soluções de montagem meticulosas e
criativas na escuridão de uma das naves do Parc des Ateliers.
Mesmo ali ao lado, numa nave paralela, a mesma bitola de qualidade
expositiva agora aplicada a Labyrinth +
Monochrome, de Daido Moriyama. Coincidência, ou talvez não, as duas mostras
que melhor souberam tirar partidos da arquitectura de montagem foram
organizadas pela Association du Méjan, responsável pela editora Actes Sud, com
sede em Arles, chancela de muitos fotolivros que todos os anos saem dos Encontros
de fotografia.
A instalação fotográfica de Moriyama é um amplo abraço a quem nela
entra. E um mergulho caleidoscópico pelo trabalho de um dos mais importantes
fotógrafos vivos, responsável pela formação de uma atitude vanguardista no
Japão do pós-guerra que influenciaria gerações de fotógrafos por todo mundo. Um
longo muro circular coberto de imagens iguais (parecidas? diferentes?) de
pernas entrelaçadas com meias rendadas suporta grandes painéis com folhas de
contacto de duas séries distintas. Em Monochrome
viajamos para as ruas de Tóquio, num fluxo de imagens taciturno e denso, a
marca de água da obra de Daido Moriyama. Em Labyrinth,
o mestre japonês joga com a disposição de fotogramas de todo o tipo e de
diferentes épocas do seu percurso, inventando sequências e falsas narrativas
num desafio à percepção e à capacidade de distinção entre o verdadeiro e o
falso. O objectivo é também fazer estremecer o cânone fotográfico segundo o
qual as obras-primas estão confinadas a uma única imagem.
Quem não está confinado a uma única imagem são as centenas de fotolivros
que todos os anos chegam aos encontros na expectativa de levar o título de
livro de fotografia do ano. Entre as obras que chegaram às mesas do Atelier de
la Chaudronnerie, ainda no meio do calor abafado das imensas naves do Parc des
Ateliers, havia pelo menos seis títulos editados
em Portugal: Rien (Pierre von
Kleist), de André Cepeda, Blue Mud Swamp
(ed. Pente 10 Gallery & Filipe Casaca), de Filipe Casaca, Lapa do Lobo (Fundação Lapa do Lobo),
vários autores, The Time Machine (ed.
The Moth House), de Edgar Martins, Couve e Coragem (ed. autor), de Lioba
Keuck, e Bad Liver and Broken Heart
(ed. Ghost), de São Trindade. O prémio Livro de Autor do Ano foi atribuído a Anticorps (ed. Editions Xavier Barral),
do francês Antoine d`Agata, e o Prémio do Livro Histórico a AOI [COD. 19.I.I.43] – AZ7 [S/COD.23]
(ed. autor), da brasileira Rosângela Rennó. O primeiro reúne parte de uma obra
autobiográfica singular em torno das errâncias de um corpo que se move nos
excessos, na noite e na vertigem da alienação total. O segundo recupera o que
resta de um conjunto de álbuns fotográficos depositados num arquivo do Rio de
Janeiro. E revela páginas desses álbuns sem nada, com o vazio que foi deixado
pelos larápios que ao longo de anos foram cortando páginas e surripiando imagens
de paisagens do Brasil.
Depois de uma passagem por todas as mesas onde pousam centenas de fotolivros,
é possível arriscar que, pelo menos na produção gráfica, a cor domina (com uma
margem confortável) o que não é propriamente uma novidade nos dias que correm.
Mas também é possível dizer que a minoria ligada ao preto e branco (sem contar
com os livros de história da fotografia) não está propriamente sentada em cima
de uma vaca sagrada, o que significa que tem encontrado novos limites, novas
formas de explorar o potencial gráfico e imagético de uma estética que perdura.
E essa dinâmica na produção fotográfica contemporânea - que já deixou
de ser uma resistência contra o que quer que seja – também vai fazendo o seu
caminho. O que quer dizer que o cisne do cartaz dos Encontros da edição deste
ano, da autoria de Michel Bouvet, ainda não apareceu para entoar o seu canto
fúnebre. Pelo menos desta vez.
Sergio Larraín, rua principal de Corleone, Sicília, Itália, 1959, Magnum Photos |
1 comentário:
Esta fotografia é linda!! Parabéns :) Mesmo!
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