14 junho, 2013

PHE13

Fernando Brito, da série Tus pasos se perdieron con el paisaje
© Fernando Brito


PHotoEspaña sem medo do corpo como um campo de batalha
Sérgio B. Gomes, em Madrid
(Público, 7.06.2013)



Subverter estereótipos, contrariar clichés. A ambição do comissário-geral do PHotoEspaña 2013, que arrancou em Madrid esta semana com dezenas de inaugurações por toda a cidade, é a de derrubar muitas das ideias feitas quando se trata de associar a palavra corpo à palavra fotografia.

O cubano Gerardo Mosquera, que cumpre este ano o seu último comissariado-geral do festival, está consciente do terreno escorregadio que decidiu trilhar ao escolher para eixo temático o corpo humano sintetizado no título Corpo. Eros y Políticas. Tudo porque, desde que existe, a fotografia sempre esteve associada à nudez, e com ela a toda uma história de representação de cariz puramente sexual que deixa pouco espaço de manobra para outras formas de expressão criativa ligadas ao corpo humano. Mas, mesmo sabendo desta carga simbólica (e correndo mais riscos), Mosquera não quis deixar de lado no festival o erotismo na fotografia, um erotismo que em alguns casos não precisa de corpos. E, para baralhar ainda mais, há também expressão fotográfica sem uma intenção erótica de raiz cujo protagonista é o corpo despido.

Confuso? Então para que o caldo fotográfico da XVI edição do festival ficasse ainda mais condimentado, o comissário-geral juntou ao reino do Eros o papel da imagem fotográfica nas lutas pela libertação e afirmação do género, na afirmação da orientação sexual e na luta contra a discriminação, entre outras dimensões relacionadas com o corpo que transitaram de um campo pessoal ou íntimo para a esfera pública. O mesmo é dizer que também foram convocados trabalhos que tecem discursos críticos e que abordam criativamente o corpo enquanto território político.

No meio do caos organizado das inaugurações do festival que se sucedem a um ritmo alucinante, Gerardo Mosquera explicou ao PÚBLICO a intenção de fechar um ciclo iniciado no seu primeiro ano de comissariado com um tema central dedicado ao rosto: "Quis problematizar ainda mais o tema da representação humana e pensei fechar a minha participação no PHotoEspaña com o corpo, aqui entendido um pouco como contraponto ao rosto - o rosto como expressão da alma, e o corpo como expressão do terreno, do orgânico e da natureza. Trata-se de confrontar estes e outros clichés." O principal responsável pela secção oficial do festival de fotografia e artes visuais (que agrupa mais de 20 exposições) quis fugir o mais possível à simplificação com que se olha para o tema do corpo na fotografia. E para isso procurou exposições que mostrassem o corpo em toda a sua complexidade nas suas múltiplas implicações, entre as quais se contam o corpo coberto (Laura Torrado), o corpo oculto (Shirin Neshat), o corpo como afirmação e suporte de uma expressão cultural (Mujer. La vanguardia Feminista de los años 70) ou o corpo agredido (Fernando Brito).


Hannah Wilke, da série S. O. S. (Starification object series). 1975 
© VBK, Vienna, 2012/Courtesy of Ronald Feldman Fine Arts, New York/SAMMLUNG VERBUND, Vienna


"Não sou um artista"
Ainda que se multipliquem os espaços por onde se podem ver exposições relacionadas com o tema central do festival, o Círculo de Belas-Artes tem a virtude de acolher as propostas que melhor o sintetizam. Él, Ella, Ello. Diálogos entre Edward Weston y Harry Callahan estabelece cumplicidades criativas entre dois mestres da fotografia norte-americana através de imagens em que os corpos das mulheres amadas assumem lugares de afecto (imagens que são resultado do desejo e não veículo de desejo). Mosquera tinha pedido à comissária Laura González Flores uma exposição de Edward Weston (1886-1958), mas ela fez uma contraproposta juntando o trabalhos de Harry Callahan (1912-1999), transformando o universo dos dois fotógrafos num jogo visual pleno de sensualidade.

É o corpo erótico numa acepção poética.

Dois lanços de escadas acima, a enérgica e bem-disposta comissária austríaca Gabriele Schor apresentou parte da colecção Sammlung Verbund (pertencente à companhia eléctrica líder na Áustria) que desde 2004 se concentra na arte feminista dos anos 70. Para Schor, este filão representa uma vanguarda artística e coloca pela primeira vez na história da arte as mulheres a trabalharem visualmente o seu próprio corpo ou o corpo feminino. As séries Desenho Habitado (1978) e Estudo para Dois Espaços (1977) da portuguesa Helena Almeida estão representadas na exposição que relaciona o trabalho de 21 artistas e que através do corpo contribuíram para a construção de uma nova identidade imagética da mulher e em que a provocação joga um papel determinante.

É o corpo político numa acepção militante e disruptiva.

Numa nova sala de exposições do Círculo, revela-se o enigmático trabalho do fotógrafo polaco Zbigniew Dlubak (1921-2005), que trabalhou obsessivamente com a nudez, mas que nunca se considerou um especialista no género. Segundo explicou a comissária Karolina Lewandowska, Dlubak, um dos mais destacados fotógrafos da vanguarda polaca do pós-guerra, estava mais interessando em explorar as singularidades dos meios de representação e a experiência de movimento que ensaiava em séries de oito ou 12 imagens.

É o corpo como campo ínfimo de criação artística numa acepção geométrica e gráfica.

Abaixo do piso térreo, o mexicano Fernando Brito (editor de fotografia do jornal diário El Debate de Culiacán, do estado de Sinaloa) apresenta um dos trabalhos mais perturbantes do festival - cadáveres humanos prostrados na natureza depois de assassínios de grande violência. Este género de fotografia Brito não publica no jornal (a política editorial manda não mostrar corpos assassinados). Ele próprio demonstrou dificuldade em classificar as fotografias que produz após informadores da polícia e de outros grupos lhe darem indicações precisas sobre a localização dos cadáveres logo depois de descobertos.

Depois de várias perguntas, ficou a meio caminho entre o fotojornalismo e um tipo de imagem que ultrapassa o documento puro, rumo a uma conceptualização visual que envolve a paisagem bucólica (há corpos esventrados com pôr do sol) e a brutalidade humana. O certo é que, qualquer que seja o género de fotografia da série Os Teus Passo Perdem-se com a Paisagem, Brito (Prémio Descubrimientos PHE 2011 com este portfólio que continua a ser concretizado) confessa que, enquanto cidadão, não conseguiu ficar de braços cruzados perante um quotidiano de violência extrema em que já é "muito difícil de distinguir os bons e os maus". "Vivo nesta cidade [Culiacán]. A minha família vive nesta cidade. Quero uma cidade pacífica. E por isso faço este trabalho como uma denúncia", disse na apresentação desta fotografias que já foram também reconhecidas com um terceiro lugar no World Press Photo.

Brito explicou que, quando alguém é assassinado com muita violência, a sociedade tende a achar que a vítima era alguém com algum tipo de culpa confirmada pelos seus executores. Foi para tentar fugir a este quotidiano macabro e de impunidade que pôs em marcha este trabalho tentando manter "o máximo respeito pelos mortos e pelas suas famílias". Questionado pelo PÚBLICO sobre os perigos da estetização de um tema tão sensível quanto este, o fotógrafo respondeu: "Não sou um artista. Sou um cidadão com um problema."

Mas não deixa de ser o corpo agredido na acepção fotográfica do termo.




Zbigniew Dlubak, 1970-1978
© Archeology of Photography Foundation/A. Dlubak

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