s/t, da série Eros, Tóquio, 1969 |
O mestre que queria ver pelos olhos
de um cão vadio
(Público, 19.01.2013)
Os ponteiros marcam 11h02 e nunca mais avançaram. A fotografia
que os imobilizou pela segunda vez incita-nos a perceber porquê, porque pararam
ali, pela primeira vez. A resposta é singela e terrível, como a fotografia que
a convoca: o tempo neste relógio de pulso ficou cristalizado no momento da
explosão da bomba atómica que os EUA lançaram sobre a cidade japonesa de
Nagasaki, a 9 de Agosto de 1945, um dos ataques nucleares que antecipou o fim da
II Guerra Mundial. Dez anos depois do bombardeamento, o fotógrafo japonês Shomei
Tomatsu recebeu a tarefa de registar a reconstrução da cidade. Mas o que
encontrou foi de tal maneira marcante que a sua lente esteve mais virada para o
passado do que para o futuro. E deu-nos uma imagem que ensaia a ausência de
tempo, o momento exacto de um acontecimento de tal magnitude em que tudo fica
suspenso. Uma imagem de um enorme poder de sugestão - os ponteiros quietos no
momento exacto em que aconteceu o que aconteceu, a explosão que terá causado a
morte imediata de cerca de 80 mil pessoas.
Wrist Watch Stopped At 11.02, 9th August 1945 é uma das muitas fotografias icónicas de Shomei
Tomatsu sobre a devastação, os sobreviventes e as consequências dos
bombardeamentos atómicos de Nagasaki e Hiroshima. Faz parte de uma série que permanece
como um dos mais poderosos registos de toda a sua obra e foi sobretudo esse
corpo de trabalho que foi lembrado no noticiário que, na última semana, deu
conta da sua morte de pneumonia provocada por um cancro, ocorrida no dia 14 de
Dezembro de 2012. Tomatsu, reconhecido como um gigante do seu ofício, como dos
mais influentes fotógrafos da moderna fotografia nipónica, era avesso à
exposição pública e, segundo o The Guardian, nunca terá saído do seu país
natal. Para ele, a fotografia "é uma questão de tornar a solidão em
pensamentos”.
Michael Hoppen, o galerista que o representava em Londres,
afirma que se perdeu “um dos maiores fotógrafos do mundo”. “Shomei Tomatsu
recusou-se a ceder em todos os níveis e era o fotógrafo dos fotógrafos”, disse
citado pelo site PDN.
Nascido Teruaki Tomatsu, em 1930, em Nagoya, Shomei Tomatsu
era um militante pacifista, muito contido nas palavras, segundo descreve o
obituário do jornal francês Le Figaro, assinanado por Valérie Duponchelle,
que o tinha entrevistado recentemente no Japão. Começou a fotografar quando era
estudante de Economia na Universidade de Aichi, no início dos anos 50. Depois
do título académico colaborou com o grupo editorial Iwanami para a
concretização da Photographic Library. Esta ligação durou pouco tornando-se freelance em 1956. Em 1959, funda a
cooperativa de fotografia VIVO em colaboração com Eiko Hosoe (1933-), Ikko
Narahara (1931-) e Kikuji Kawada (1933-).
Citado pelo British Journal of Photography, o crítico e
teórico de fotografia Gerry Badger afirma que Tomatsu influenciou “de forma
decisiva” a chamada “geração Provoke”
que, no final dos anos 60, agrupou fotógrafos japoneses em início de carreira
que desenvolveram um estilo visual “em roda livre, altamente expressionista no
qual cada fotografia pretendia chegar aos limites da incoerência descritiva”.
Para Badger, um dos aspectos mais relevantes deste grupo, que teve em Tomatsu
um dos principais impulsionadores e contava com nomes como Takuma Nakahira,
Daido Moriyama e Koji Taki, era a sua atitude desafiante em relação ao mundo,
uma atitude inflamada pelo protesto político e pouco interessada em consolidar
um estilo ou uma estética particulares. O nome dessa geração veio da meteórica revista Provoke, objecto seminal e ponto de
viragem fundamental na fotografia japonesa. O sub-título com que se publicava é
elucidativo do programa: “Documentação incendiária para um pensamento novo”.
Tomatsu, que tinha 82 anos, esteve internado no hospital de
Naha, capital da província de Okinawa, no Sul do país, uma das regiões que mais
fotografou e onde captou as marcas de uma cultura muito particular que
sobreviveu recorrentes invasões, conquistas e ocupações, como a que aconteceu
com o Exército norte-americano depois da capitulação nipónica na II Guerra
Mundial. A cultura popular americana do pós-guerra e a sua influência na
sociedade japonesa foi, aliás, outro dos seus principais corpos de trabalho. Chewing Gum and Chocolate é uma das
séries mais famosas deste trabalho e foi registada ao longo de vários anos nos
arredores de bases aéreas americanas então instaladas naquela região japonesa. “Embarquei
num mar de caos inominável que nem era a América, nem era o Japão. É um mar
global, e estamos todos a flutuar nele”, disse o mestre japonês numa referência
às ambivalências e contradições com que se deparou.
O poder de Melted Bottle
A morte de um fotógrafo atira-nos inevitavelmente para os
registos que mais se destacaram no seu percurso. Outro dos exercícios destes
momentos de rememoração selectiva, que tem a sua dose de aleatoriedade, de
risco e de injustiça, inclui isolar a fotografia que ficará ligada ao seu nome
como obra maior, aquela que conjuga com maior eficácia a expressão de uma ideia
e de uma atitude perante a realidade e o sujeito que se apresenta perante a
objectiva. No caso de Shomei Tomatsu esse exercício é difícil, porque a obra é
vasta e de altíssima qualidade. Há, no entanto, uma imagem que o coloca nos
píncaros desse objectivo e que é olhada com uma das suas fotografias mais
poderosas. Melted Bottle (garrafa
derretida) não é uma imagem imediata, mostra aquilo que parece um corpo mutante
retorcido, um corpo sem pele, esticado, quando na verdade é uma garrafa de
cerveja moldada pelo calor e impacto da bomba nuclear de Nagasaki. Os objectos
arquivados num pequeno museu de memória, onde foi registada esta fotografia, no
final dos anos 50, dão a Tomatsu uma metáfora visual poderosa do que aconteceu a
tudo o resto na zona de impacto dos ataques nucleares. Por esta altura já era
um fotógrafo pouco interessado nos mecanismos do fotojornalismo clássico,
preferindo abordagem expressionista, por vezes surreal.
Salvo raras excepções, na série sobre Hiroshima e Nagasaki,
vertida no livro Document 61, em
conjunto com Ken Domon, Tomatsu evita captar directamente as feridas e as
cicatrizes das vítimas provocadas pelos ataques nucleares. Escolhe muitas vezes
olhar para baixo, na procura das marcas indirectas, na sugestão do sofrimento,
nas indicações sobre os custos e as consequências da deriva nuclear militar. Esse
desfile de objectos estranhos e engelhados ganha ainda mais protagonismo no
fotolivro Nagasaki 11.02 (numa
referência à imagem do relógio parado que abre a obra) que foi concretizado já
sem os constrangimentos editoriais dos organismos oficiais japoneses que lhe
encomendaram o livro anterior. Aqui Melted
Bottle aparece estampada em página inteira, ao lado de outros objectos mutantes,
ligeiramente familiares. O fotógrafo e crítico americano Leo Rubinfien (curador
e autor de um ensaio para a primeira grande retrospectiva de Shomei Tomatsu no
Ocidente, Skin of a Nation, no
SFMOMA, São Francisco, EUA, em 2004) refere-se a esta imagem como “a mais
forte” de toda a obra do mestre japonês. Rubinfien explica esta abordagem que, sendo radical,
guarda um certo pudor: “Não podia ser um lamento, porque Nagasaki renascia à
medida que Tomatsu trabalhava, mas por baixo da superfície permanecia uma dor
tão grande que qualquer expressão aberta de simpatia seria um insulto”. Martin
Parr, que inclui vários livros de Shomei Tomatsu na sua “bíblia” dos melhores
fotolivros do mundo, não tem dúvidas que Melted
Bottle “é uma daquelas fotografias raras que vale por mil outras”. “O
horror que esta simples imagem evoca demostra de forma conclusiva que Tomatsu
estava certo ao abandonar o literal a favor do alusivo e do metafórico como os
tropos mais apropriados para descrever o Japão do pós-guerra”, refere a resenha
laudatória de Nagasaki 11.02.
"Se pudesse, queria ver tudo. Os meus olhos são
infamemente gananciosos", confessou Tomatsu. Talvez a expressão máxima deste desejo tenha sido concretizada em Oh! Shinjuku (1969), outra das referências
maiores dos fotolivros a nível mundial. Para o erguer, Tomatsu passou largos
períodos da década de 60 no bairro comercial e boémio de Shinjuku, Tóquio. Como
se estivesse a ver “através dos olhos de um cão vadio”, o mestre japonês
registou tudo quanto era frenesi contestatário contra os EUA, revoltas
estudantis, vida boémia, pulsão sexual e entranhas da droga. Para além de
desmistificar a imagem de um Japão pacifista, revela-nos a mundanidade, o
excesso e o arrebatamento de um lugar que reflectia um leque de ambivalências, a
profunda mudança que então se operava na sociedade nipónica urbana.
Embora imbuído na ambição de tudo querer registar, o Tomatsu
foi capaz de isolar de forma eficaz, complexa e tenazmente pessoal as mudanças
da sociedade japonesa desde os anos 50, começando no olhar cândido que colocou
nos objectos de Nagasaki até ao boom económico
dos últimos anos.
O mestre era dono de um leque variado de recursos para
construir imagem fotográfica que vão das abordagens mais canónicas da
fotografia de rua e as composições minimais de objectos prenhes de simbolismo
às composições urbanas abstractas, aos rasgos dinâmicos e expressionistas.
No final dos anos 90, Tomatsu instalou-se novamente em
Nagasaki, onde voltou a retratar sobreviventes da bomba atómica, até que, há
cerca de dois anos, regressou a Okinawa, onde acabou por morrer. Uma das
últimas grandes exposições do seu trabalho aconteceu em 2009 no Museu da Bomba
Atómica de Nagasaki.
“Se tivesse tido sete vivas, teria sido fotógrafo em todas
elas”, disse um dia.
Protest, da série Protest, Tóquio, 1969 |
Melted Bottle, da série Nagasaki 11.02, Nagasaki, 1961 |
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