25 julho, 2012

as cidades


Tiago Silva Nunes, Crumbling Plum, da série Broken Strangers Beijing
© Tiago Silva Nunes

O fotógrafo e realizador Tiago Silva Nunes andou por quatro cidades onde as tensões entre o homem, a paisagem e o urbano são particularmente fortes. A exposição Broken Strangers Beijing, na galeria Pente 10, em Lisboa, é composta por dípticos que revelam esses diálogos em Londres, Lisboa, Beijing e Rio de Janeiro. Maria do Carmo Serén escreveu o ensaio sobre este trabalho:

Esta é uma Cidade que já não é

Esta é uma cidade que já não é “a Oriente”, essa expressão só portuguesa que falava de um exotismo conquistado, de uma apropriação de mercador e soldado viajante. A Oriente de que Ocidente?

Em 7 mágicos dípticos, duas vezes sete imagens conflituam na luta da globalização e dos conflitos da imagem fotográfica. E, como sempre acontece na habituação dos gestos e das atitudes, (e é essa a magia da contaminação), há perdas e ganhos mas uma nova identidade. Uma complexa, intangível identidade que se veste de uma aparente ocidentalização e, em paralelo, uma estranheza que a fotografia, rompendo e fraccionando o mundo, lhe atribui e, rasgando a continuidade e a ordem das coisas, nos dificulta o olhar.

A selecção não é, naturalmente, neutra. Identifica a intimidade do sujeito do fotógrafo com os valores e males deste nosso Ocidente em crise de memória. É o esplendor negativo das nossas cidades tóxicas, criadas para manter a ordem do lucro, das coisas e dos homens em pouco espaço: os prédios em altura de frieza modernista, o aparcamento pago, os jardins de oxigénio para o jogging dos que cuidam do corpo, os condomínios de “resort” dos ricos, o alcatroado, as habitações inglórias e os equipamentos standard da circulação. Nestas aglomerações funcionais que o homem constrói e dizemos sem humanidade, o mesmo homem isola-se com os seus devaneios, fecha-se em si, parte: a solidão é o nosso corolário da vida utilitariamente programada.

Em busca da intangibilidade, da estranheza do diferente, daquela alma que cada cidade constrói para se sentir em casa, o fotógrafo escolheu os contrapontos que poderiam contaminar esse destino global e que nos surgem como uma velha estampa chinesa: os jardins onde árvores lânguidas se organizam no espaço para serem olhadas na sua fragilidade, os pequenos santuários da Natureza, o amontoado de periferia dos seus hutongs, velhos bairros aristocráticos agora desolados e erodidos mas ostentando, por vezes, a sua baronia, - pedras lavradas, entradas destacadas, perdidas entre arranjos apressados, o ritual na entrada daquela jovem, enfim, a Pequim da nossa literatura exótica.
É pois uma cidade de signos, onde os próprios signos nos são mostrados na ambivalência dos dípticos para gerarem a compreensão do novelo onde entrançamos a vida e o futuro. Eles mesmos interpretados de antemão, porque a fotografia, que não vive sem figuração e sem criar referentes é, antes de tudo, o sujeito que manipula, enquadra, corta, isola e compõe as imagens. Esse sujeito que cria sentido é, também ele, manipulado, enquadrado, cortado, isolado e composto pelas suas crenças, pelo imaginário que se afirma com a comunidade de base. E, naturalmente, pela sua aprendizagem do meio técnico e social onde se fabricam e distribuem as imagens.

O Ocidente constrói-se através de dicotomias, de bem e mal, de belo e feio, aberto fechado; afirmou o sujeito mas perdeu a Natureza no interior da paisagem.

Hoje sabe da exigência da diversidade e da inevitabilidade da contaminação. O tempo falsifica as certezas e a continuidade das coisas perde-se no meio das novas soluções. Dicotomias são meros sistemas de classificação e o sentido das coisas e das ideias parte apenas dos afectos e dessas conjecturas pregnantes que o mundo nos proporciona num primeiro e incerto olhar: o que faz a rapariga num barco sem destino? Para quê o guarda-chuva da outra num dia de Sol? O que leva esses jovens, em qualquer parte do mundo como aqui em Beijing a trilharem qualquer torre de Babel para atingirem o céu?

O que impele o fotógrafo a terminar a sua série com um regresso a uma Natureza de papel de prata, fluindo para a jovem que a contempla?

E se o enredo desta selecção de imagens nos pode levar a diversas reflexões e devaneios cognitivos, a sua sedução repousa nesse olhar primeiro: são imagens de afecto que não voltarão a repetir-se.

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