29 outubro, 2011

Marín

Concurso de balões em Madrid, 1913


Marín - Um fotógrafo moderno e apaixonado
Lucinda Canelas (P2, Público, 14.10.2011)

Nada o fazia parar. De carro ou de mota, Marín ia a todo o lado para fotografar. Podia ser um casamento da alta burguesia de Madrid, um concurso de balões de ar quente numa feira qualquer, as férias da família real em San Sebastián, corridas de automóveis no circuito de Lasarte ou milícias comunistas patrulhando as ruas de Toledo em plena Guerra Civil. O estúdio não lhe interessava, porque a realidade encenada, com a luz e a expressão adequadas ao cânone da época, o aborrecia. Só o imprevisível, o natural e o imediato motivavam este perito agrícola, que era funcionário público e que, através da fotografia, se transformou num dos mais transversais e estimulantes cronistas sociais da primeira metade do século XX espanhol.

Marín. Fotografias 1908-1940, a exposição patente no Centro Português de Fotografia (CPF), no Porto, em colaboração com o Instituto Cervantes e a Fundação Pablo Iglesias, é o seu cartão-de-visita para o mundo. Tudo porque Luis Ramón Marín (1884-1944) esteve esquecido durante 60 anos – parou de fotografar no fim da guerra que levou à vitória dos nacionalistas chefiados por Francisco Franco e as suas fotografias deixaram de ser publicadas na imprensa da época, porque muitas delas estavam demasiado próximas do discurso da esquerda. Mostrá-las, aliás, poria em risco a vida de Marín e da sua família. Foi para a proteger e para salvaguardar a sua obra que Eduarda Plá, sua mulher, escondeu o arquivo do fotógrafo por trás de uma parede da cozinha da casa que partilhavam com a filha, Lucía.

“Sem estas duas mulheres não saberíamos quem foi Marín”, diz ao P2 Oscar Martín, responsável por todas as exposições organizadas pela Fundação Pablo Iglesias, entre os caixotes de madeira que enchem o átrio da sala do CPF onde, até 18 de Dezembro, podem ver-se 50 instantâneos – no verdadeiro sentido do termo – deste espanhol, que foi um dos primeiros fotojornalistas. Foi a esta instituição criada para homenagear o co-fundador do Partido Socialista espanhol que Lucía Ramón Plá decidiu confiar o arquivo do pai em 2003. “Não é só a qualidade técnica, absolutamente impecável, que impressiona em Marín”, defende o comissário da exposição. “Há também uma qualidade estética inquestionável, uma capacidade extraordinária de se apaixonar por tudo com a mesma intensidade, a mesma inquietação permanente.” Esta multiplicidade de interesses torna-se logo evidente à entrada da exposição itinerante do CPF, a mesma que a fundação já levou a Cracóvia, Dublin e Berlim. No átrio há um auto-retrato em que Marín mostra as capacidades atléticas e, ao mesmo tempo, o sentido de humor subtil que marca muitas das suas imagens, há uma fotografia intimista de Raquel Meller, cantora e estrela do cinema espanhol dos anos 20 e 30, que faz lembrar um quadro de Vermeer, e ainda o registo de um concurso de balões, em 1913. “Marín vai ter com as pessoas, faz tudo para estar em cima dos acontecimentos, seja na frente [na guerra], seja no camarim de Josephine Baker. Mas nunca faz a fotografia óbvia”, explica Oscar Martín.

Visão democrática
Martín conhece bem o arquivo do fotógrafo e está habituado a falar dele como se de um tesouro se tratasse. “A sua sensibilidade; a maneira de olhar, muito moderna, o que se passa à sua volta, sem distinções de tratamento nas classes sociais; a forma inteligente como fixa o que vê, sem artifícios; tudo isto faz dele um fotógrafo especial”, diz, apontando para duas fotografias, expostas lado a lado, em que essa visão “democrática” da sociedade se revela: ambas registam os momentos que antecedem o anúncio da lotaria de Natal, mas uma é tirada no Café de La Paz e mostra pessoas bem vestidas junto a um telefone, outra foi feita no meio da rua, à volta de uma fogueira.

As 50 imagens de Marín. Fotografias 1908-1940, na sua maioria em 50x70 cm, foram seleccionadas de um conjunto de 250 que fizeram parte de uma grande exposição em 2007, a primeira a partir do arquivo do fotógrafo, recuperado pela fundação com o apoio da Telefónica (Marín fotografou a instalação das linhas da companhia). O acervo exposto há quatro anos foi seleccionado do espólio de 18 mil negativos (mais de 15 mil em placas de vidro) que o fotógrafo guardou cuidadosamente em caixas e catalogou em dezenas de cadernos. A partir das caixas que Lucía entregou pode acompanhar-se a sua evolução, a paixão pela velocidade, as máquinas, os avanços tecnológicos (foi dos primeiros a fazer fotografia aérea em Espanha, em 1913), mas também “a sua grande humanidade”, no registo da evacuação de Teruel (cidade em que se deu uma das mais duras batalhas da Guerra Civil) e das condições de vida miseráveis dos madrilenos durante o cerco da capital, com os republicanos a tentar resistir às tropas de Franco, apoiadas pela Alemanha de Hitler e pela Itália de Mussolini.

A Guerra Civil de Espanha (1936- 1939) – a primeira das guerras modernas ou a última das românticas – foi a derradeira missão de Marín. Para a sua cobertura, feita sobretudo em Madrid, escolheu uma Leica de 35mm, a câmara de eleição do grande Cartier-Bresson, que também registou o conflito, tal como Robert Capa, Gerda Taro e David “Chim” Seymour. “Se algum deles se encontrou com Marín, não sei, mas é provável. A imprensa estrangeira estava toda no Hotel Florida, em Madrid, e Taro morreu em Brunete, onde ele fotografou... Unia-os um grande humanismo e isso vê-se na fotografia – são pessoas que compreendem as pessoas.”



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