Jóias à beira da estrada
Luís Maio (Fugas, Público, 30.10.2010)
Learning From Las Legas saiu em 1972 e foi uma pedrada no charco no mundo da arquitectura. O ensaio assinado por Robert Venturi e Denise Scott Brown veio propor a reabilitação da arquitectura vernacular, nos antípodas do funcionalismo e do austero estilo internacional, que então vigoravam no ramo. Contagiados pela vibração popular, os autores improvisaram títulos jocosos para as duas principais categorias de arquitectura que divisaram em Vegas. Chamaram “alpendres decorados” a edifícios frequentemente banais, mas cobertos de reclames, caso por excelência dos casinos da Strip. Atribuíram, por outro lado, a designação de “grande pato” àqueles que pela sua forma publicitam o que vendem – justamente como o mercado de aves construído em betão armado com a silhueta de um pato, que descortinaram em Long Island.
Esta apologia do vernacular antecipou o debate da pós-modernidade, mas na altura indignou os arquitectos sérios e mais genericamente a intelligentsia norte-americana. Learning From Las Legas não foi, no entanto, uma estreia absoluta: dois anos antes, a Liga de Arquitectura de Nova Iorque organizou uma retrospectiva dedicada a Morris Lapidus, autor de uma porção de hotéis surreais, sobretudo construídos em Miami e Hollywood. O autor desse escândalo, que é como quem diz o curador da exposição Lapidus, era John Margolies, então um jovem graduado em Comunicação Social. Voltaria a reincidir pouco depois ao assinar na revista Progressive Architecture uma apologia do Madonna Inn, hotel temático e catedral do kitsch, sediada em San Luis Obispo, na Califórnia.
John Margolies era desde miúdo um apaixonado do vernacular, em particular da arquitectura e do design que cresceram à beira das velhas estradas da América. Learning From Las Legas veio dar-lhe legitimação teórica, mas também um novo estímulo para partir à descoberta de “grandes patos” e “alpendres decorados” pela América fora. Tornou-se então fotógrafo e durante os trinta anos seguintes viajou perto de 150 mil quilómetros. Sempre dentro dos Estados Unidos, sempre na senda dessas peças de desenho extraordinário. Roadside America, editado Taschen, é a mais recente retrospectiva desse extraordinário trabalho de campo.
Paisagens improvisadas
Os motéis e restaurantes à beira da estrada surgiram nos anos 20, os minigolfes e os cinemas drive-in popularizaram-se na década seguinte. A vulgarização dessas atracções e comércios resultou da paixão norte-americana pelo automóvel, desencadeada pelo lançamento do Modelo T da Ford em 1908. A sua rápida produção em série levou à criação quase instantânea de uma intrincada rede rodoviária, cruzando o país inteiro.
Se os automóveis foram feitos para andar, o propósito dos negócios à beira da estrada era desviá-los do caminho. Um desafio nada fácil de resolver, a que os proprietários dos estabelecimento –, na maior parte gente com mais engenho que cultura –, respondeu improvisando estratégias por vezes luminosas, mas raramente subtis de autopromoção. Letras garrafais, tabuletas XL, néones cintilantes e um sem número de fantasias arquitectónicas integraram esse reportório de manobras de diversão, sinalizando e simbolizando uma variedade de tópicos, desde a fome à diversão, passando pela fé e pela moda. Toda uma iconografia de factura popular, respondendo à necessidade básica de chamar à atenção, não propriamente a exigências de apuro estilístico – embora boa parte dessas criações ingénuas tenha vindo a ser mais tarde reabilitada como Pop Art instantânea.
Até que, em 1956, o Governo Federal aprovou uma lei destinando cerca de 33 mil milhões de dólares para a construção de auto-estradas. Passou a ser possível viajar de costa a costa dos Estados Unidos sem precisar de fazer grandes paragens. Para tornar o sistema mais funcional, a lei previa o condicionamento dos acessos às auto-estradas, proibindo qualquer espécie de distracção nas bermas. As novas condições de circulação coincidiram, por isso mesmo, com a multiplicação de estabelecimentos de traça uniforme de marcas como Shell nos combustíveis, Holiday Inn na hotelaria ou McDonald’s na restauração. O êxito destes fenómenos de estandardização e franchising foram a machadada final para muitos negócios independentes de arquitectura ou design únicos, semeados à beira de antigas e cada vez menos usadas rodovias de via dupla.
Consagração da nostalgia
Foi este universo tipicamente norte-americano, entretanto desqualificado como baixa cultura e condenado em nome do progresso, que John Margolies se propôs documentar a partir de meados dos anos 70. Recorreu à fotografia, mesmo sem saber grande coisa de fotografia e ao longo de trinta anos de carreira foi repetindo que não era fotógrafo. John usava máquinas Canon, uma lente básica (há quem prefira dizer “clássica”) de 50 mm e filmes de 25 ASA, um tipo de filme lento, ideal para puxar pelas cores. Nunca chegou, por outro lado, a fazer o upgrade para o digital.
Margolies tinha, no entanto, um método peculiar, ou melhor será dizer a sua própria rotina de campanha. Ele, que vivia em Nova Iorque, partia à exploração de estradas secundárias na América profunda, por temporadas mais ou menos largas (conforme os patrocínios), mas sempre na estação baixa, para evitar eventuais congestionamentos de trânsito. Chegava aos sítios através de uma ou outra dica de edifícios na sua esfera de interesses, depois ia perguntando e descobrindo outros pelo caminho.
Fotografava sempre com céus azuis (pelos quais podia esperar vários dias), de preferência de manhãzinha, condições que lhe permitiam tirar partido das cores mais frequentemente saturadas dos seus temas. Mas não procurava uma perspectiva especial, ou qualquer tipo de efeito autoral. As suas imagens comungam de uma neutralidade, mais tarde revalorizada como o tom perfeito para acentuar a carga dramática/ poética das suas atracções arruinadas.
Os prédios que fotografava poderiam estar ao abandono ou à beira da demolição, mas as suas imagens depressa chamaram à atenção, valendo-lhe uma subvenção da Guggenheim Fellowship em 1978. Outros financiamentos se seguiram, permitindo-lhe passar até quatro meses por ano a fotografar on the road. Depois vieram as exposições, a começar pelos hotéis das montanhas de Catskill, no Museu Cooper-Hewitt de Design de Nova Iorque, em 1980, e as edições em livro, seja sob a forma de catálogo das exposições, seja de antologias temáticas, dedicadas a especialidade como os cinemas drive-in e os minigolfes.
A consagração internacional chegou já no novo milénio, com homenagens em lugares tão distantes quanto Roma e Macau, ao mesmo tempo que o próprio Congresso norte-americano lhe reconheceu o mérito, comprando-lhe fotografias para o seu arquivo. O mesmo é dizer que as imagens de John Margolies e, consequentemente, a arquitectura e o design vernaculares que passou a vida a retratar, já não são considerados uma piada de mau gosto, mas parte integrante da identidade americana.
A paixão de Margolies terá certamente contribuído para a mobilização que se tem verificado nos Estados Unidos no sentido de preservar os seus tesouros à beira da estrada, inclusive requalificando-os como destinos turísticos. Há mesmo um roadsideamerica.com, guia online para atracções estranhas e prodigiosas, do qual muito obviamente a Tashchen tomou o nome de empréstimo para a presente edição. O guia inclui mapas, sugestões de hotéis e dicas para excursões pela América bizarra e artigos sobre temas tão insólitos como cemitérios de cães, mulheres transparentes e bovinos gigantes.
roadsideamerica.com não partilha, no entanto, da visão e do sentido quase missionário subjacentes ao trabalho de Margolies, já comparado a Heródoto, o célebre historiador que na Antiguidade se dedicou a lançar luz sobre civilizações desaparecidas. Não é menos certo, por outro lado, que as imagens do fotógrafo nova-iorquino funcionam para além do documental, seduzindo na mesma medida em que invocam uma América utópica e desaparecida – a América que já não existe mas com que sonha meio mundo. Nesse aspecto, John Margolies não ficará muito a dever a artistas como Edward Hopper ou Norman Rockwell.
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