07 fevereiro, 2010

mentiras

Pilar Albarracín, da série 300 mentiras
© Pilar Albarracín


A Galeria Filomena Soares, em Lisboa, mostra a primeira parte da série 300 Mentiras da fotógrafa sevilhana Pilar Albarracín. É um trabalho engenhoso e desafiante (a lembrar Erwin Wurm) que nos confronta com a ilusão e com a representação sempre coladas à imagem fotográfica.

O texto de apresentação de 300 Mentiras diz o seguinte:

A procura da verdade tem motivado um trabalho incessante entre os filósofos e grandes pensadores ao longo dos séculos; e, cada vez mais, as suas descobertas têm conduzido a diversos caminhos. Mas quais seriam os caminhos percorridos se fosse "a busca da mentira" a guiar a inquietude do pensamento?

Pilar Albarracín já começou a percorrer esta segunda via através dum projecto de grande alcance intitulado as
300 mentiras (da história), a primeira parte do qual se apresenta aqui.

Utilizando a fotografia, a artista constrói, modifica ou recria momentos da história expondo "acontecimentos reais" que, na realidade, nunca ocorreram. Assim, Pilar Albarracín traz de volta ao campo da arte um debate que tem permanecido aberto na historiografia desde os anos oitenta, altura em que o historiador britânico Benedict Anderson abalou alguns pilares da disciplina com a sua pergunta "... e se, pelo contrário, a "antiguidade" fosse, em certas conjunturas históricas, a inevitável consequência da "novidade?"[1]. Com esta interrogação Anderson estaria a sugerir a existência de práticas de construção do futuro a partir de um passado imaginado.

Ao mesmo tempo, e dentro do mesmo contexto disciplinar, a tradição - devido à sua íntima relação com a história - tem-se tornado no alvo das atenções e um dos eixos centrais da obra de Albarracín desde o princípio. Tal como explicam Eric Hobsbawm e Terence Ranger[2], certas tradições com suposta origem na antiguidade são frequentemente recentes ou são inventadas para alimentar uma determinada situação, usufruindo da legitimidade irrefutável de raízes culturais que remontam aos tempos ancestrais.

E é da história recriada e das tradições inventadas que se alimenta a obra
300 mentiras de Pilar Albarracín, uma obra que oscila constantemente entre a realidade e a ficção, o acontecimento real e o inventado, a imagem e a imaginação, e que se baseia num vaivém constante entre os planos do autêntico e do reconstruído para, no final, atingir a recriação duma nova autenticidade. A chave interpretativa da sua obra reside no imaginário colectivo e no sistema de símbolos interiores que actuam como repositórios das ligações de significados entre a mentira representada e a possível realidade histórica subjacente.

Cada fotografia que dá expressão ao projecto é uma obra em si mesma, dotada de autonomia e portadora dos seus próprios significados. No entanto, fios subtis ligam cada uma das imagens às outras, conferindo-lhes a coerência de um sistema sustentado pelos motivos que revelam toda a trajectória da artista. Cada "mentira", perfeitamente identificável com um determinado momento histórico, uma tradição, um contexto ritual ou uma fase da existência, é atravessada por conteúdos mais abrangentes nos quais a artista se apoia: a identidade procurada, negada ou afirmada; as culturas baseadas no género; a tensão entre a vida e a morte; a luta pelo poder como fenómeno ancestral e actual; as assimetrias sociais, de género, étnicas e de estatuto social; a submissão ao poder estabelecido.

Todos estes elementos têm estruturado a obra de Pilar Albarracín desde que começou a dar os primeiros passos no mundo da arte. Têm servido de base a trabalhos fotográficos, performances e instalações, marcados por uma forte carga de ironia e humor satírico, destinados a provocar o diálogo sobre a ordem sócio-sexual estabelecida, derrubar os modelos comuns da feminilidade e masculinidade ou desmistificar as construções estereotipadas do " espanhol", através do aproveitamento de certos elementos do folclore andaluz.

Em
300 mentiras. Primeira parte todos estes temas se reúnem e interligam entre si graças a imagens que partilham do mesmo código simbólico para recriar uma história crítica - embora fictícia - que, assim, é tão credível como a versão oficial adoptada arbitrariamente.

Elena Sacchetti Dezembro 2009


[1] Anderson, Benedict (1983), Imagined Communities, Verso, London - New York, p. 20.
[2] Hobsbawm & Terence Ranger (1983), The invention of tradition, Cambridge University Press, Cambridge.

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