29 outubro, 2009
/uma fotografia, um nome\
Esta imagem pertence a uma série de três, A céu aberto, que vi pela primeira vez em Braga, nos Encontros da Imagem em 2002; a autora cedeu-me duas para uma publicação recente. Trata-se de uma transfiguração: a figura curvada que se encontra em primeiro plano irá transmutar-se numa nuvem compacta de flores vermelhas que parecem papoilas; na terceira fotografia apenas vemos um compacto conjunto de flores. São imagens muito belas, onde a dominante é a cor esparsa das papoilas. Esta imagem é a primeira da série.
Mas quando as vi ocorreu-me de imediato uma novela de Boris Vian, na qual uma rapariga doente dos pulmões apenas sobrevivia aspirando a vitalidade flores que sucessivamente lhe traziam e que, também sucessivamente, murchavam: era um trocadilho, mas arrepiava. Na série de Graça Sarsfield as flores investem sobre a mulher vergada, quase indistinta na penumbra e ocupam todo o seu espaço. É a vanguarda de um enxame de flores sedentas do corpo que flutuam à altura dos nossos olhos, um enxame de flores vermelhas de sangue.
E, no entanto, há uma delicadeza, uma estética muito clara na composição que sempre se sobrepõe à nossa consternação. As flores de fogo, frágeis como um sopro, não rimam com este sentimento nem com o fim das coisas, fins de dia, fins de luz. Acodem no fim da vida, como participantes, como homenagem. Talvez por isso mesmo me acudam velhas hipóteses de Pitágoras sobre a contínua encarnação, o ciclo de nascimentos das almas pouco responsáveis.
Mas seja para contar esta história ou fazer uma narrativa qualquer, confrontamos uma encenação fabulosa, um enquadramento de mistério, profundamente onírico: a sombra da mulher suficientemente vergada para deixar visível a janela por onde entram, uma a uma, as papoilas e, ao mesmo tempo, definir os contornos da figura na penumbra; esta semi-obscuridade esclarecida não pela clarabóia mas pela luz da sala adjacente, o envelhecimento e abandono de todo o contexto… é todo o ritual mistérico que se define. A luz vem com as papoilas vermelhas acabará por encher o espaço e retirar outra informação quando o enxame de flores absorver a mulher.
São imagens perversas, na fragilidade da sua indeterminação. É uma narrativa perversa que retira à ideia da flor a sua benignidade e beleza. Um pesadelo muito belo.
… A obra fotográfica sempre foi uma obra aberta.
Maria do Carmo Serén
Graça Sarsfield trabalha e vive no Porto.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
O milagre das rosas... Bonito ;)
Enviar um comentário