03 junho, 2009

PHE09

Pedro Costa, Tarrafal (fotograma), 2007

À janela a olhar o dia que passa


(P2, Público, 03.06.2009)

A vista da janela de Le Gras, captada pelo pai da fotografia, Niépce, nos arredores de Chalon-sur-Saône, entre 1826 e 1827, mostra um trivial conjunto de casas, um par de janelas e uma vaga linha de horizonte. A vista de Le Gras (França) é uma experiência ainda enublada e tosca, mas é, ao mesmo tempo, a matriz de um postal nítido que já vimos vezes sem conta.

O sujeito que compõe a imagem fundadora da fotografia não podia ser mais premonitório do universo que mais se colou à sua prática ao longo dos anos - o quotidiano tornado visível através da ínfima variedade de gestos do dia-a-dia, comuns e repetitivos. É a percepção da realidade imediata que está simplesmente ao nosso alcance, ali, do outro lado da janela, na face de um postal ilustrado ou na janela de um browser de Internet. Se por um lado passámos a partilhar mais o nosso quotidiano, por outro também nos tornámos consumidores vorazes do quotidiano dos outros. Como se estivéssemos todos à janela.

São tão voláteis, complexas e diversas as manifestações visuais da vida diária que não deixa de surpreender (e de mostrar coragem) a escolha do tema Quotidiano como eixo central do PhotoEspaña, o festival de fotografia e artes visuais comissariado pelo segundo ano pelo português Sérgio Mah e que é hoje oficialmente inaugurado em Madrid.

Talvez por causa dessa dificuldade de limitar campos criativos que escapam a convenções e regras estabelecidas, Mah prefere abordar o tema de uma forma aberta e abstracta, não vinculando directamente nenhuma exposição do programa à defesa concreta da quotidianidade enquanto experiência criativa. "O PhotoEspaña não pretende ser uma referência de autoridade estética e moral. Acima de tudo, trata-se de um espaço aberto à multiplicidade de sensibilidades, motivações e comportamentos que compõem o panorama actual das práticas da imagem", escreve no texto do catálogo oficial.

Mas o certo é que as propostas expositivas que apresenta, sozinho ou em conjunto com outros comissários, abarcam uma cronologia muito alargada (a mostra de trabalhos de Dorothea Lange dos anos 30 é a mais recuada na Secção Oficial) e o conjunto acaba por funcionar mais como ponto da situação do que "reflexão sobre tendências recentes da cultura e das artes visuais contemporâneas concentradas na realidade imediata e ordinária do quotidiano".

Faltam, por exemplo, propostas que questionem a fruição de imagens via Web (o suporte onde hoje o quotidiano está mais efervescente), que representem as actuais ferramentas digitais de partilha de imagens - que estão a perder as qualidades vídeo-foto-gráficas para se tornarem cada vez mais "pixográficas" - ou ainda que reflictam sobre a tendência para dar ao conjunto alargado de quem vê através da Net o poder de escolher aquilo que deve ser levado para o museu, como recentemente aconteceu no nova-iorquino Brooklyn Museum of Art com a exposição Click!, na prática comissariada pelos cerca de cem mil cibernautas de todo o mundo que seleccionaram as 389 fotografias da mostra.

Inspirado no facto de nos últimos anos a fotografia, o cinema documental e a vídeo-arte terem redobrado o interesse por objectos visuais que se concentram na crueza do "verdadeiro", no "reconhecível" e nas propostas que se dedicam e exploram "o movimento banal e rotineiro das situações do dia-a-dia", o comissário decidiu dar protagonismo na Secção Oficial à obra do cineasta português Pedro Costa, autor que leva a experiência do documental até à sua expressão mais extrema.

Ao PÚBLICO Mah justifica a escolha de Costa com a "atitude criativa baseada em gestos muito simples". "O cinema de Pedro Costa é um exemplo paradigmático. Trabalha com suporte vídeo, o que lhe permite filmar com menos pessoas e focar-se no essencial. Ele não está preocupado com o espectacular nem com o extraordinário."

Na programação do festival, Pedro Costa é o único autor com direito a mais do que uma iniciativa relacionada com o seu trabalho. Para a Filmoteca Española, durante todo o mês de Junho, está programada uma retrospectiva completa que inclui o último filme, Ne Change Rien (2009), um retrato singular da actriz e cantora francesa Jeanne Balibar, até agora visto apenas no Festival de Cannes.

Pedro Costa em Madrid, Benoliel em Cuenca
No Cine Doré da Filmoteca passarão ainda alguns filmes escolhidos pelo realizador e no Matadero de Madrid será montada uma instalação (Back Home. Video Works) com três momentos criados a partir de material audiovisual captado durante a rodagem dos filmes No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006).

Um sinal de que a obra de Pedro Costa reúne muitos admiradores no país vizinho foi dado pela versão espanhola da revista Cahiers du Cinéma, que dedica uma edição especial à obra do realizador português com textos assinados por mais de uma dezena de pessoas. Para Sérgio Mah, Pedro Costa "sempre se sentiu próximo da fotografia pela facilidade e simplicidade do seu processo de criação". A exposição no Matadero promete dar "uma perspectiva do seu trabalho para além da produção cinematográfica" e propõe uma reflexão "sobre a sua aproximação a outros universos das artes visuais".

Longe do reconhecimento internacional de que goza Pedro Costa, o repórter fotográfico Joshua Benoliel, pioneiro do fotojornalismo, é o outro representante português na programação deste ano. A exposição que será inaugurada em Cuenca, cidade nos arredores Madrid escolhida como sede do festival, trará parte do conjunto de imagens fotográficas e outros documentos que foram vistos durante a última edição do LisboaPhoto, em 2005. Incluída na secção OpenPhoto, que reúne propostas de vários países fora do tema geral do festival, a mostra, comissariada por Emília Tavares, representa, no entanto, uma oportunidade rara de divulgar internacionalmente o trabalho de um fotógrafo "histórico", no caso a colossal produção de Benoliel ao longo dos primeiros e cruciais 30 anos do século XX português.

Lugar para todos
Entre o conjunto de exposições da Secção Oficial, aquela que mais próxima tenta estar da ideia geral do tema, encontram-se propostas muito diversas, com múltiplos modelos criativos e autores de diferentes gerações e geografias. Lado a lado com representações mais actuais e imediatas do quotidiano (Pedro Costa e Zhao Liang) surgem propostas que apelam mais a momentos históricos de criação onde o fotográfico se cruza com o documento ético (anos 30, com Dorothea Lange) ou onde o estilo documental se mistura em definitivo com o conceptual e passa, no fim dos anos 70, a ser encarado como suporte artístico.

É dentro deste último universo que se inscrevem as exposições de Patrick Faigenbaum (retrospectiva em torno do documental e prática pictórica) e daquele que é considerado um dos mais influentes artistas vivos, o alemão Gerhard Richter, que apresenta uma monumental série de Fotografias Pintadas que cruzam dois universos criativos e problematizam a nossa percepção das imagens e da realidade.

Na colectiva Anos 70. Fotografia e Vida Quotidiana, comissariada por Sérgio Mah e Paul Wombell, tenta estabelecer-se um mapa das vanguardas ligadas à imagem fotográfica de uma década considerada fundamental para compreender tudo o que se passou na arte contemporânea dos últimos 35 anos. Estão representados, entre outros, Allan Sekula, Victor Burgin, Boltanski e Sophie Calle.

Para um festival preocupado em aumentar a cada ano o número de visitantes e empenhado em conquistar novos públicos, há também propostas que piscam o olho ao imediatamente reconhecível e ao universo da espectacularidade. No campo das exposições de encher o olho aparece, por exemplo, a ultramediática Annie Leibovitz e sua Vida de Uma Fotógrafa, que oscila entre a captura da intimidade familiar e o registo da mais brilhante constelação de estrelas de Hollywood.

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