© Cristóbal Hara, VEGAP, Madrid, 2007
O Quotidiano do PhotoEspaña começa em Lisboa
(P2, Público, 29.05.2009)
Está de regresso ao Museu Colecção Berardo, em Lisboa, a extensão do PhotoEspaña que este ano voltou a escolher Portugal para arranque do vasto programa do festival que durante a próxima semana inaugurará dezenas de exposições em Madrid e Cuenca. O Quotidiano, tema escolhido pelo comissário geral Sérgio Mah para a edição deste ano, assume abordagens muito distintas nos trabalhos de Cristóbal Hara e Mabel Palacín, os dois artistas espanhóis escolhidos para as exposições que hoje abrem ao público no Centro Cultural de Belém.
Sérgio Mah assume O Quotidiano “em sequência” e “em relação profunda” com O Lugar, o tema da edição do ano passado. A acrescentar à reflexão sobre a espacialidade, a geografia e a topografia dos lugares surge agora o confronto de fotógrafos e artistas visuais com “a experiência e a percepção da vida quotidiana”, através dos gestos comuns e das mais banais manifestações do dia-a-dia, um universo cada vez mais explorado e potenciado por suportes como a Internet, em substituição de meios mais tradicionais como a televisão. A ambição do comissário passa ainda por compreender e colocar em diálogo o crescente interesse dos artistas pelo “reconhecível” e pelo “documental” nas diferentes artes visuais.
Para explicar aquilo que mais lhe interessa registar na fotografia do quotidiano de pequenas localidades de toda a Espanha, Cristóbal Hara recorre a uma técnica que conhece bem - a construção de imagens. Muito económico nas palavras, pede apenas para imaginarmos com ele duas fotografias. Na primeira brilharia um mega-concerto com todo o tipo de efeitos de luz, som, imagem e pirotecnia. Na segunda apareceria um homem a tocar viola, sozinho, num palco apenas iluminado pelo lusco-fusco. A Cristóbal interessa-lhe a simplicidade, a crueza e a banalidade do que em potência lhe transmitiria a segunda fotografia. O conjunto de imagens que agora mostra em Lisboa traçam o seu percurso de duas décadas pelos mais obscuros lugarejos espanhóis em busca dessa “geografia vernacular” em torno da morte, do sexo, da violência, da religião e do sentido comunitário das populações minúsculas. Os animais, em particular os cavalos e o universo tauromáquico mais primitivo e pobre, são sujeitos com presença destacada. Os nomes das terras por onde passou estão longe de constar em guias turísticos: Cuéllar; Villarín de Campos; Bajo Aragón; Pinofranqueado; Zúbar.
Notam-se os resquícios da linguagem fotográfica do fotojornalismo, área da fotografia a que primeiro se dedicou, mas encontram-se em muitas imagens sinais de que quis fugir a este registo, como quando corta caras no enquadramento e as esconde na sombra. O uso de negativos de cores mais saturadas, mais perto de um género de fotografia amadora, em vez do clássico preto e branco, suporte com que trabalhou no início, ajudaram-no a “libertar-se” das amarras do discurso fotográfico do jornalismo. “Acho que consegui encontrar o meu registo quando comecei a fotografar a cores, comecei a divertir-me”, disse ao PÚBLICO durante a apresentação da mostra que inclui ainda um vídeo inédito e um documentário realizado para o canal franco-alemão Arte.
Uma das séries de fotografias mais intensas da exposição foi captada em Denia entre 1997 e 2004. Mostra bonecas de plástico semi-queimadas depois de rituais satíricos que se inspiram na actualidade. O formato de impressão escolhido, o triplo do da maioria das restantes fotografias, funciona bem não só pelo impacto do tema – bocados de corpos de plástico e cinzas flashados no alcatrão – como também pela escala real daquelas figuras que parecem saídas de um filme de terror. Enquanto folheava o livro Autobiography (Steidl), do qual fazem parte estas fotografias, Hara confessava estar orgulhoso com o resultado. “Tive muita sorte”. Mas a explicação que deu a seguir mostra que não foi só sorte: “Neste tipo de celebrações fotografam-se quase sempre as bonecas a arder e tudo o que rodeia a acção dos rituais. Ninguém fotografa os bocados que ficam depois das fogueiras”. Hara fotografou. Autobiography parte do conjunto da sua obra para um auto-retrato. As imagens da série de Denia evocam o pecado.
Embora esteja longe do ofuscamento tecnológico, as criações videográficas e fotográficas de Mabel Palacín utilizam recursos e suportes mais elaborados, muito distantes das fotografias directas e sintéticas de Hara. Os modos e as técnicas de fazer são outros, mas a experiência do quotidiano está bem presente nos vídeos Hinterland e A distância correcta e nas sequências de fotografias As portas Espanholas. Em Hinterland (periferia), Palacín parte apenas de uma imagem fotográfica para criar uma narrativa em vídeo com mais de 11 minutos em torno de um lugar e de um conjunto de personagens. Estamos sempre a ver a mesma imagem, mas o corte e costura da montagem, com a ajuda de separadores com pistas narrativas, instalam a confusão entre o que é novo e o que já foi visto. O sentimento de repetição só não é maior porque os efeitos de zoom e os enquadramentos procuram sempre pequenas diferenças. Nos primeiros momentos da projecção ainda se pensa que são várias fotografias a compor a narrativa. A meio desconfia-se. E no fim fica-se perto da certeza. Na sala seguinte surge a única fotografia que esteve na base do vídeo. Foi captada na periferia de uma cidade do Norte da Itália, uma zona do tecido urbano híbrida e que funciona como local de passagem, de distribuição e de exploração industrial. A fealdade domina a cena (e o cenário). A composição meticulosa da imagem fotográfica que serviu como ponto de partida mostra como a partir de um momento particular se podem construir infinitas narrativas e relatos do sucedido. Uma narrativa banal – como é o caso – é só uma possibilidade.
O segundo vídeo, A distância correcta, mistura movimentos banais do dia-a-dia com excertos de clássicos do cinema e cinema de autor. Através de uma distância correcta entre um e outro universo, Palacín executa um jogo de interacção e convergência de diferentes momentos narrativos. A chave está no uso da mesma linguagem visual – aqui, a cinematográfica. Já As Portas Espanholas partiram daquilo que a artista classifica como uma “anedota” – a conclusão de Palacín de que só em Espanha as portas não fecham apenas com o trinco, é sempre preciso uma chave. A disposição dos três conjuntos é assumidamente filmográfica e maleável. A leitura vertical de três imagens resulta em distintos começos e fins, de acordo com a disposição das molduras na parede.
A porta do PhotoEspaña em Portugal já está aberta. Falta abrir a de Espanha.
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