© Augusto Lemos
“A cidade do Porto é uma estrutura complicada; hoje distribui-se por mais de 7 colinas. O velho centro cívico da Sé já era, na voz caseira e descontente dos seus burgueses medievais, 'uma fraga' sem viço e sem proveito. Vista de Vila Nova de Gaia, que se lhe ergue paralela na outra margem, a cidade despenha-se no Douro, adivinhando-se aqui e ali os muitos rios encanados que foram abrindo passagem por entre os montes. É também uma cidade de muitas águas que encharcavam os caminhos e se abriam em dezenas de fontes.
Aqui, nesta enganosa imagem de Augusto Lemos encontramo-nos a meio do cruzamento de duas vertentes que descem divergentes para a Praça da Liberdade, (onde se alarga o esteio das duas ribeiras invisíveis que vão fazer em Mouzinho da Silveira, o Rio da Vila). A casa vagamente modernista à nossa direita deveria estar bem inserida num forte plano inclinado. À esquerda, na nossa memória, sobe a igreja dos Clérigos, de Nasoni; ainda vemos os últimos patamares da sua Torre, ex-libris da cidade.
O absurdo da observação calha bem com o lugar que os edifícios escondem: para lá do visível fica a Cadeia da Relação, actual CPF e o antigo lugar do Campo dos Enforcados, párias até na morte.
Para lá da Torre e da Porta do Olival, do velho muro, ficava a Judiaria. Era um lugar maldito, o Monte da Vitória e o planalto da Cordoaria, onde mais tarde, na Universidade de hoje, ficava o Colégio dos Órfãos, com a sua cruz vermelha na túnica andrajosa. É todo um lugar de muitos poderes e muitas transgressões.
A fotografia tem destas coisas. Quando há uma brecha faz-nos ver as estratificações dos tempos e, ainda, as correcções da memória.
Augusto Lemos acentua aqui a transgressão que determinou a série Um Porto de Nível. Não se trata de uma simulação, o título aponta a origem da transgressão: há um nivelamento de uma rua que é inclinada, produzida pela posição da câmara. Com essa alteração, tudo se modifica.
Quem se coloca à porta da Igreja dos Clérigos vê a rua descer até à Praça, fazendo um quase espelho com o abrupto da rua em frente dos olhos, 31 de Janeiro; a ribeira que vem de Sampaio Bruno e a Ribeira das Hortas, na rua do Almada, criaram a planície intermédia dos poucos metros da Baixa e tornaram mais elevados os montes da Sé e da Vitória. Não há um metro de terreno que não sofra a inclinação das rochas de granito.
Ora o insólito da imagem argumenta com os dados visuais da memória que guardamos. Por vezes a memória é imperfeita, achaque habitual que rodeia o muito conhecido com que nos cruzamos. E aí a fotografia avança com a sua virtude terapêutica: acrescenta dados, completa a informação defeituosa. No mínimo dá-nos a imperfeição dos dados em armazém e faz-nos olhar de novo, reflectir sobre essa mesma leviandade do olhar.
Neste Um Porto de Nível questiona-se tanto essa leviandade de estar como a simulação do olhar. Mas o que fica é mesmo o acto fotográfico, que não é apenas a integração das glórias e limitações da câmara, mas aquele olhar que não lhe pertence.
O desejo que se afirma no olhar distingue o sujeito do objecto, mas considera-se Uno entre os dois; mas um Uno como parte de um não-todo. Por isso a psiquiatria fala de real apenas aqui, neste momento de verdade: o acto de amor da fotografia nunca é desinteressado, porque é desejo, mas está nas antípodas do cinismo. No mundo de simulação que necessariamente somos, tudo converge para a integração.”
Maria do Carmo Serén
Augusto Lemos é fotógrafo, professor de Fotografia e arqueólogo.
Vive e trabalha no Porto.
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