“Os edifícios, como este [Cadeia da Relação, CPF, Porto], guardam uma clareza perversa na sua estrutura, ou na ocultação dos seus desígnios. Guardam e declaram um intocado discurso do poder e, quantas vezes, do arbitrário.
Aqui todos os humanismos se excluem, e as teorias do bem-fazer, as racionalidades do progresso desencadeiam a mesma violência. Porque a civilização que puniu o delito com a pena foi a mesma que isolou a diferença e inventou para o homem incómodo o determinismo do normal e do patológico; determinismo que se afirma ou se branqueia e substitui o crime pela tendência, o homem pelo tipo, a voz pelo silêncio.
As vozes que não são ouvidas, porque menores, porque irrelevantes, enchem de murmúrios edifícios como este, gémeo das genealogias dos maiores, onde a História se inscreve sobre o corpo social que não fala, não deixa marcas, só mal-estar e rumores.
Esta é a mostra de um corpo incógnito, que a História tipificou, retirando-lhe a realidade e o nome. E, porque no seu momento de cientificação, a história criminal é também a história da fotografia, esta é uma montra de solidariedades, entre a fotografia e a repressão: do que se esconde, se insinua, do que se revela e do que se constitui na aliança do judiciário e do fotográfico.
É da natureza da fotografia cuidar da cândida garantia do seu valor de verdade, recolhido da sua tomada directa sobre a realidade. Mais do que qualquer outra, a relação da fotografia com as instituições policiais e judiciárias, esclareceu o que o fotógrafo sempre soube e, no fundo, sempre quis: que a fotografia só fala quando rodeada do simbólico, quando fruto de uma estética da representação que apela ao código social. Ao saber traduzir as ideologias judiciárias da diferença e da exclusão, através de cuidados modelos de degenerados, a fotografia tornou-se responsável pela aceitação dessas infelizes teorias, que ainda informam a nossa mentalidade.
Olhar, hoje, estes corpos de que a instituição judiciária se apropriou, obriga à descodificação paralela os discursos ideológicos e da gramática técnica, estética e social que a fotografia introduzia, - introduz, - no espaço aparentemente inócuo de uma representação verdadeira e directa do real.
Só então, estas imagens, no deliberado despojamento de pertença de todo o lugar físico e social que não seja a prisão, representam o pouco que podem representar, murmúrios sem memória, que atravessam o tempo e nos agridem.”
Maria do Carmo Serén
(Texto de introdução do catálogo da exposição Murmúrios do Tempo)
>>Post relacionado
>(o regresso dos murmúrios)
Murmúrios do Tempo
Espaço Cultural Silo, NorteShopping, Porto
Até 5 de Dezembro
1 comentário:
um texto interessante sobre a fotografia. mas para compreende-lo realmente é preciso mais de uma leitura, ainda mais na parte que responsabiliza a fotografia pelas infelizes teorias...
gostei daqui.
passa lá pra conhecer meu humilde cantinho: www.alem-do-olhar.blogspot.com
beijos
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