02 outubro, 2008
Cutileiro inédito
Em parte, a culpa foi da rebarbadora que ao moldar a pedra mármore atirou para o ar milhões de partículas de pó. Mesmo quando se mudou para uma casa maior, em Évora, o escultor João Cutileiro não se conseguiu livrar do pó. E não havia maneira de fazer a “necessária desinfecção” para entrar na câmara escura livre da nuvem de poeira branca e fina que se entranhava na mais ínfima ranhura. Cobria-lhe o corpo e a roupa. Nessa altura, para Cutileiro tirar fotografias era “fácil”, “revelar e imprimir” é que era “um horror” porque no papel fotográfico vinham sempre impressas as marcas do escultor e da escultura na pedra – os minúsculos grãos de pó.
O corpo coberto de pó é a imagem que temos do mestre. O pó ganhou a batalha. E a fotografia foi ficando pelo caminho. Os líquidos a apodrecerem nos tanques da câmara escura. O pó ganhou a batalha, mas João Cutileiro escultor nunca deixou de ser fotógrafo – de esculturas e de retratos dos que o rodearam ao longo dos últimos 60 anos.
Ainda que de forma intermitente, o resultado desse labor dedicado à imagem fotográfica foi sendo mostrado em público, pelo menos desde o início dos anos 60. Às vezes em complemento de exposições de escultura, outras como criação solitária sempre voltada para o rosto e para o corpo. Desafiado pelo crítico de arte Alexandre Pomar, João Cutileiro decidiu agora revelar um conjunto de fotografias vintage, boa parte das quais inéditas e provas únicas (alguns negativos perderam-se num armazém em Londres), na galeria de fotografia e casa de leilões Potássio 4, em Lisboa. A mostra, que será inaugurada no dia 9, antecede um leilão de 30 lotes, agendado para o dia 23, cuja receita reverterá a favor da Abraço, a associação de apoio a pessoas infectadas com VIH/Sida.
O género que mais fascina Cutileiro na fotografia é o retrato, com rosto ou sem ele, com roupa ou sem ela. Na exposição que vai abrir portas, que recupera imagens captadas em Inglaterra e em Portugal durante os anos 50, 60 e 70 e impressas pelo autor, não há grandes derivações. Revelam-se corpos ora em pose assumida e ambientes íntimos, ora em flirt a espreitar pelo buraco da fechadura. Em Blow Up (Hampstead Heath, 1965), Cutileiro lembra esse papel do fotógrafo como um caçador implacável a “roubar” imagens a casais incógnitos que rebolam abraçados pelos jardins. Na longa sequência La Grande Stripteaseuse (Londres, 1966) revela-se a cumplicidade entre retratista e retratado e mistura-se sensualidade com uma certa joie de vivre.
Para Alexandre Pomar, a exposição da Potássio 4 vai surpreender porque esta faceta de João Cutileiro fotógrafo “não é conhecida ou foi esquecida”. Em declarações ao P2, o crítico sublinha a qualidade dos retratos do escultor, muito “originais e frescos” para a época em que foram captados. Pomar salienta ainda uma forte presença do corpo feminino nestas imagens, consequência directa da bagagem que traz da escultura, onde as curvas da mulher são presença constante. “Estas fotografias de corpos são esculturas. Ele fez estas imagens com um olhar de escultor.”
Se por um lado, a escultura foi uma das razões que fizeram com que o trabalho de João Cutileiro na fotografia não fosse mais “regular”, por outro foi muito por causa dela que começou a pegar em máquinas fotográficas, quando era estudante na Slade School of Arts de Londres. “As esculturas não viajam. Convinha fotografá-las, fosse para os relatórios de fim de ano, fosse para o que fosse eu precisava de tirar fotografias”, disse ao P2 por telefone.
Podiam ser só simples registos documentais de peças esculpidas para trabalhos académicos, mas o certo é que essas imagens geraram cobiça entre os outros estudantes. Já havia quem fizesse esse trabalho, mas Cutileiro baixou o preço e tornou-se no fotógrafo oficial dos aspirantes a escultores. Com o dinheiro veio uma Rolleiflex em segunda mão que “uns belos anos” mais tarde foi emprestada ao neurologista António Damásio e nunca mais foi devolvida (“espero que ele leia isto”, ri-se Cutileiro). “Nos primórdios, em Londres, por causa da minha necessidade de sobrevivência, a fotografia foi uma muleta enorme, direi mesmo uma cadeirinha de rodas”, revela o escultor.
Depois dessa fase em que se serviu da fotografia de uma forma “utilitária”, e quando ainda faltavam alguns frames para acabar os rolos de 12 exposições, o escultor começou a fotografar os filhos dos amigos, muito mais velhos, que lhe pediam várias cópias para mandar para a família. Foram as últimas imagens com as quais ganhou dinheiro, no princípio da década de 70. A partir daí, passou a convidar amigos a posarem para sua câmara, apenas por prazer.
A propósito desta exposição, Alexandre Pomar escreve no seu blogue: "Cutileiro é um dos nomes certos da revolução fotográfica dos anos 50 e um dos poucos, um dos primeiros, que nesse tempo mostrou publicamente as suas fotografias”. Para além do escultor, apenas Fernando Lemos e a dupla Victor Palla/Costa Martins tinham mostrado fotografias em exposições individuais de galeria, lembra Pomar. Contudo, João Cutileiro não se sente parte desse grupo, não tanto pelo estilo mas mais pela distância geográfica: “eu estava em Londres e eles estavam cá e isso fazia com que eu estivesse muito à margem das preocupações deles”.
Durante anos a fio ligado à fotografia analógica, Cutileiro é hoje um defensor acérrimo da imagem digital e vai tirando partido de uma ou outra brincadeira técnica. “Como eu estou velho, podre e perro, em vez de me baixar, rodo o visor e tenho a imagem do que os meus joelhos vêem. Sinto-me à vontade no universo da fotografia digital”. O aviso não podia ser mais claro: “no futuro, nunca mais ninguém vai querer fotografar em suporte analógico. Está morto e enterrado”.
Sérgio B. Gomes
(P2, Público, 1.10.2008)
Alexandre Pomar fala sobre a exposição e sobre o percurso de João Cutileiro na fotografia aqui
João Cutileiro, Vintage nudes from the 60s and the 70s
Galeria Potássio 4, R. dos Navegantes, 16, Lisboa
Exposição: de 9 a 23 de Outubro
Leilão: 23 de Outubro, às 09h00
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12 comentários:
Fiquei com curiosidade de ir ver a exposição embora a minha carteira não dê para comprar nada no leilão.
Espero que o pessoal abra os cordões à bolsa para ajudarem a Abraço
Sarava!
Não fico admirada com as fotografias.
E creio que a exposição será um sucesso. Admiro a ousadia do meu querido João.
Foi pioneiro no comércio de escultura em Portugal. E as peças são deliciosas, sobretudo as suas meninas/mulheres de pedra...
A fotografia é outro dos seus mil encantos... quase sempre sem cor.. mas com tudo!
Perguntas:
1. a pessoa fotografada deu autorização para a sua publicitação?
2. o fotógrafo tem autorização da pessoa fotografada para a mostrar?
3. em que condições é que a pessoa fotografada se deixou fotografar? Teve prévio conhecimento de que as fotografias seriam mostradas publicamente e leiloadas?
4. estamos perante um inaceitável caso de violação da privacidade?
5. estamos perante um infame caso de violação da intimidade de uma pessoa?
6. estamos perante pseudo arte ou de uma indignidade?
7. onde estão os direitos da pessoa fotografada?
Eu conheço as respostas, será que alguém poderá fazer estas perguntas ao artista?
A ABRAÇO está de acordo com a violação dos direitos e da dignidade de uma mulher?
Aqui estarei atento ás eventuais respostas.
AC
Temos um espectador chateado com os direitos das pessoas fotografadas! A tal ponto que o Sérgio Gomes já tirou do site algumas imagens que faziam parte do post!!!
Não conheço a forma como as fotografias foram feitas, ou a pessoa que veio cá "reclamar", mas a verdade é que, enquanto fotografada, a pessoa deixou-se fotografar. E passou a fazer parte de uma obra que, acima de tudo, é de João Cutileiro! Só ele pode, caso queira, "esconder" ou "censurar" a sua obra.
Já as fotos da série "Blow Up", essas foram tiradas à socapa, sem autorização dos autores. E caso se reconhecessem as pessoas fotografadas, estas podiam reclamar.
São duas situações diferentes, mas como fotógrafo que sou (e penso que é assim com a maior parte dos fotógrafos que usam a fotografia como um meio, e não como uma maneira de tirar partido de alguem) a simples autorização verbal por parte do fotografado permite que eu me "apodere" da sua imagem.
De qualquer maneira, gostava de ouvir a opinião de outras pessoas. E gostava de saber se existe alguma lei que possa prever esta situação.
Detestava ter que andar na rua com um contracto no bolso (ou um molho deles) cada vez que saio com a minha câmara e me apetece fotografar alguém!
O ponto de vista de Joao Cutileiro e' interessante - falo em relacao 'a sua adopcao pelo digital (para evitar desde ja' quaisquer mal-entendidos).
Em todo o caso rejeito a sua afirmacao de que o filme esteja morto e enterrado.
E constato isso num plano mais abrangente, que embora nao possa servir como generalizacao e' um bom indicador - o Flickr.
Ao se navagar por esse website pode-se verificar uma coisa interessante (e que pode ser validada pela cronologia, com que as fotografias sao colocadas no site).
Existem muitas pessoas, que embora tenham comecado pelo formato digital comecam a fotografar em filme pelas suas caracteristicas.
Por outro lado, tambem e' um facto de que o formato digital tem uma serie de vantagens, e e' assim tambem um facto de que a fotografia digital veio para ficar.
Penso que os dois tipos de fotografia podem muito bem conviver em harmonia sem que se tenham de levantar sempre questoes em torno desta rivalidade potencial.
Uma das vantagens do digital - e que e' a evolucao tecnica, tem sido exactamente a vantagem tambem do filme.
Equipamento outrora considerado profissional torna-se obsoleto e desvalorizado criando interesse e gerando um volume de negocio consideravel em mercados "paralelos", como o eBay ou lojas que vendam material em segunda mao.
Este tipo de equipamento volta assim ao activo e sao raros os casos em que existem apenas como objectos de coleccao (a nao ser, claro, se por algum motivo houver algum impedimento, como por exemplo usarem pilhas que ja' nao se fabricam e ainda assim existem sempre formas de contornar o problema).
Um destes casos e' precisamente o fenomeno que a Polaroid estava a atravessar ate' que a marca decidiu mesmo deixar de produzir filme.
O digital pode ser considerado um sucesso porque conseguiu distinguir finalmente os "dois tempos" da Fotografia: a producao e a divulgacao.
A web em geral e sites como o Flickr, mais em particular tem sido os veiculos que ajudaram a cimentar a evolucao da producao de imagem ao nivel da divulgacao da divulgacao tecnica e estetica.
Contudo, o filme nao morreu, como se querer fazer crer.
Morreria sim, se fabricantes de material de topo comecassem a ter precos mais acessiveis. Agora ter sistemas da Hasselblad por mais de $17.000 (ou ter backs digitais por $30.000) e full frames por mais de $2000, nao sao alternativas ainda viaveis, ainda para mais quando se conseguem comprar sistemas de medio formato a precos bastante acessiveis. Serao sim ao nivel comercial, nao tenho qualquer duvida.
Mas se o digital tem algum valor em termos de producao e' pela ajuda que deu 'a generalizacao da fotografia alargando o numero de fotografos, com o custo da qualidade, que vai melhorando, sem duvida, mas que ainda nao e' suficientemente boa quando comparada com o resultado que se pode ter com um bom filme e tirado numa maquina de medio formato.
Oh! Que pena! É tão bela a nudez de uma mulher! Por vezes parece bem mais interessante o cinto de ligas que as flores no cabelo. Anda aqui o pessoal todo a arranhar-se por causo de fotografias tão interessantes! Não quero ofender ninguém! Eu estou fora, não sou de nenhum partido e desconheço as leis do mercado da arte embora os meus Amigos já me tivessem alertado. Também desconheço as marcas mais conceituadas, porque tantos esquemas e engrenagens me tiram o "tesão". Só cá venho para ver fotografias e antes do nome a elas associadas, vejo as imagens. Depois, aprecio o texto que as acompanha e aborrece-me quando isto parece por demais profissional, de uma frieza quase executiva e com pouco cunho pessoal. Mas se este blogue for apenas de um profissional, ainda assim, acho que estou perante um bom profissional, mas prefiro nada perceber de politica. Gosto apenas de sentir naturalmente as imagens e as que vi considerei-as dignas. Mas talvez seja por não ser a minha pessoa o referente, pensarão alguns de vos. E na verdade, todos estamos realmente certos!
Caro anónimo das 2H57,
Não sou espectador nem estou chateado com o direito das pessoas fotografadas.
Simplesmente respeito as pessoas, que têm direitos, quer o senhor queira ou não. E um deles é ao da privacidade e da intimidade.
O que acontece é que as fotografias que aqui estavam foram tiradas privadamente há mais de 40 anos e jamais para serem publicadas e muito menos para serem leiloadas.E mais aconteceu: aconteceu que o João Cutileiro de uma forma vil e infame, sem qualquer autorização da pessoa fotografadam, as doou para serem leiloadas. E isto é crime. E por este crime irá responder perante a justiça.O facto de ser artista não lhe dá mais direitos, ou acha que sim?
Este Blog já percebeu e não quis continuar a ser cúmplice do mesmo crime e por isso retirou as fotos.
As páginas aqui publicadas e respectivos comentários foram todas imprimidas.
Gostaria de destacar o interessante post no blog do fotógrafo Carlos M. Fernandes:
http://carlosmfernandes.wordpress.com/2008/10/05/cutileiro%E2%80%99s-auction-and-exhibition-image-rights-or-censorship/
Em resposta ao senhor Afonso Cabral, devo dizer que fui eu que escrevi o post das 2H57. E devo dizer que a forma agressiva com que escreve o seu comentário não se enquadra minimamente naquilo que é este sitio. o Arte Photográphica sempre se distinguiu por prezar o rigor e a seriedade. É certo que as "notícias" publicadas são escritas com base em textos que fornecem ao autor do blog, e nesse sentido penso que será demasiado atribuir qualquer tipo de "culpa" ao Sérgio Gomes, relativamente à utilização das ditas fotos.
De qualquer maneira não é isso que aqui interessa. O meu comentário vinha no seguimento da discussão, para tentar compreender até que ponto as imagens pertencem ao autor ou ao sujeito fotografado. E neste raciocínio, devo dizer que me coloco do lado do autor. As pessoas não podem pensar que ao ser fotografadas, têm a sua imagem salvaguardada, a não ser que requisitem o contrário. Mas nesse caso, não existe nenhum motivo para se deixarem fotografar.
Bem, polémicas à parte, quando me referi a si como espectador, falei assim por ser uma pessoa que observa. As imagens neste caso.
E não me acredito que a impressão das páginas publicadas e dos respectivos comentários lhe sirvam para qualquer tipo de coisa (prova). A internet, como todos sabemos, continua a liberdade de expressão que usufruimos na realidade!
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