“Era por razão desse amor que ela queria partir. Porque a visão daquela terra, em tais desmandados maus tratos, era um espinho de sangrar seus todos corações. E suspirava, em imperfeita certeza: quanto tempo demora o tempo! Depois, dedo cruzando os lábios em ordem de segredo, conduzia Farida pelo corredor. Queria que a menina contemplasse o vestido verde, pendurado, pronto, sem nenhuma ruga.
- É para a viagem!
E sorria, alegre desse mais tarde, consoante o sonhado. Ficava na janela olhando o país que inexistia, desenhado em geografia da saudade. Tanto esmolou a Deus um outro lugar que ela se foi fazendo remota e, aos poucos, Farida receou que sua nova mãe nunca mais se acertasse. Sobre velhas fotografias, com um lápis, a velha portuguesa desenhava outras imagens. Às vezes, recortava-as com uma tesourinha e colava as figuras de umas fotos nas outras. Era como se movesse o passado dentro do presente.
- Olha, vês? Este é o meu tio. Foi quando ele veio cá visitar-nos.
Um tal parente jamais estivera em África. Mas Farida nem ousava desmentir. As fotos recompostas traziam novas verdades a uma vida feita de mentiras.”
07 agosto, 2008
“entre aspas”
Mia Couto, Terra Sonâmbula
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1 comentário:
Que saudade do "entre aspas"!
Apetece-me descansar no olhar comum, todo emoção cega ou visão pura, já nem sei. No olhar abstraído de pressupostos artísticos, técnicos ou filosóficos, próprio de alguém que leva na carteira e colada ao coração a fotografia de um amante perdido e sempre presente que pode estar meio desfocada sem querer, com pouco contraste e esverdeada sem querer e mal enquadrada sem mesmo ocorrer que poderia ficar melhor e ainda assim, nada disto a desvirtuar.
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