18 fevereiro, 2008

/uma fotografia, um nome\

Corpo Grego
(© Danilo Pavone)


Fotograficamente, aqui celebra-se o corte e a distorção. Mas, antes, no olhar total, celebra-se o corpo. Danilo Pavone, que se licenciou em Belas Artes em Bolonha, chama ao conjunto onde se insere esta imagem, “Corpo Grego”, lembrando talvez aquelas figurinhas de terracota que já encantaram Eça de Queirós, - couros e core que nos ensinaram mais sobre harmonia do que os módulos humanos da escultura grega clássica.

E então o fotógrafo distorceu a harmonia do corpo, cindiu-a em pedaços e, em segunda instância, dividiu o corpo horizontalmente. Porque se trata de uma opção fotográfica, que em si mesma encerra já esse momento fundamental, o “cut”. Porque é essa a lei da fotografia, que nos habituou a ver o mundo não em síntese, mas em fragmentos, com fora de campo inteligíveis, porque um dos papéis da arte é precisamente ser uma metáfora do entendimento.

O gesto do corte é uma forma de violência contra o espaço e o tempo que parecem constituir a nossa forma de estar no mundo. A imagem fotográfica instaura uma catástrofe no devir inevitável do tempo, interrompe, suspende o tempo e fracciona, isola, uma pequeníssima parte da extensão. O fotógrafo, insiste Philippe Dubois, trabalha sempre com a faca. Aqui, nesta imagem de Danilo Pavone, o tempo não tem qualquer arrimo, pois o fundo neutro não nos dá um só elemento simbólico que nos permita situá-la no tempo. E o tempo da tomada de vista morreu em si mesmo, escapou-se para lá dela um outro tempo de um fluir contínuo; a fotografia é sempre uma imagem singular.

Mas é uma fotografia refeita, performativa. Deixa-nos uma série de pistas: esta insistência no fraccionamento do homem que vivemos desde o “homem demolido”, dos anos sessenta, e se agrava comos novos fantasmas do virtual. E, também por isso mesmo, a força agónica da separação, da perda, onde, a mal, se recupera o corpo depois da falta. Há um traço demoníaco na diluição da orelha de fauno, no estreitamento do braço, no seio quase clonado no feminino, na reconstituição de mau laboratório. E nesse uso da faca digital que arrisca destruir a beleza clássica, transparente na codificação negada, impõe-se uma outra estética que se insinua na descodificação do belo como excesso de composição, abrindo o abismo da perversidade. A teoria fotográfica contemporânea inventou o jogo da clarificação: a fotografia é índice de qualquer coisa, não é a coisa; é presente eterno, é sempre pretérito, é a cinza que ficou de um teletransporte granulado. A fotografia é a brecha, bem o sabemos. Do pensar e do sentir.
E é, naturalmente, um olhar. Um olhar informado, que argumenta, que descarrega no corte do mundo, todo o invisível que a formação do fotógrafo assim revela. Clandestinas, seguem as contradições da alma que criam a diferença, nesta dobra mal sustentada que é a nossa vida: a fotografia é sempre um corte, a faca inteligível no abismo, acorda em nós a certeza de que todas as nossas convicções caminham no fio do arame.

Maria do Carmo Serén

Danilo Pavone (Catânia, 1971),
Foi fotógrafo militar do Exército italiano,
fez levantamentos fotográficos de Arqueologia,
é habilitado em conservação e restauro fotográfico.
Com fotografia de autor esteve na Arte Lisboa 2005 e 2006, no Centro Português
de Fotografia, em 2007, nas Bienais de V. N. de Cerveira e V. F. de Xira (1º Prémio em 2003).
Trabalha em Condeixa.

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